Opinião
Um ensaio que descreve as prováveis causas do medo de existir dos portugueses, conforme percepcionado e entendido pelo filósofo José Gil. Dividido em vários pequenos capítulos, José Gil primeiro exemplifica certos comportamentos da sociedade portuguesa para chegar à definição do fenómeno de não-inscrição, em que o leitor mais esclarecido por outras leituras ou experiência de vida (principalmente se tiver tido contacto com sociedades de outros países), facilmente identificará muitas das causas e efeitos como características da sociedade de consumo dos nossos dias (e mais em particular nos países ocidentais) e como efeito da globalização, e não propriamente e apenas da sociedade portuguesa. Assim, os primeiros capítulos levam o leitor menos avisado a acreditar que grande parte dos problemas dos portugueses são especificamente seus, os quais já foram abordados numa perspectiva mais unviversal em algumas obras de um passado mais ou menos recente, das quais destaco «As Opiniões e as Crenças», de Gustava Le Bon, «A Rebelião das Massas», de Ortega y Gasset, e «A Sociedade do Espectáculo», de Guy Debord. Ainda, muito se fala dos traumas causados pelo regime de Salazar, quando muitas das características da sociedade actual apresentadas nestes capítulos estão presentes em relatos do século XIX, como se poderá ver lendo «As Farpas», de Eça de Queiroz, e mesmo escritos quotidianos de outros países, como por exemplo Dostoievski nos seus diários, que faz descrições da sociedade e política russas com comportamentos muitos semelhantes aos que observamos nos dias de hoje na nossa sociedade.
A segunda parte do livro é muito menos subjectiva de interpretação e de qualidade muito mais elevada. José Gil faz ressalvas importantes, em que passa a supor as causas em vez de as afirmar, e de sublinhar que os fenómenos que acontecem na sociedade portuguesa também acontecem noutros países. Os fenómenos e comportamentos começam a ser mais fundamentados, aludindo a escritos de filósofos, pensadores e escritores para ajudar à explicação do estado actual da sociedade portuguesa, e o caminho que esta está a seguir. São notáveis os capítulos dedicados ao «Medo de Existir» e ao «Terror e Trauma», pela elaboração, fundamentação, e apontamento lúcido dos perigos em que está a cair a sociedade portuguesa, agora com descrições convincentes de características genuinamente portuguesas (embora ainda com algumas reticências relativamente à definição do vazio e do pleno como características unicamente portuguesas), e do estado actual da sociedade portuguesa.
O último capítulo mancha a elevação de qualidade encontrada nos 3 capítulos precedentes, pelo decalque um pouco forçado de tudo o que José Gil descreveu aplicando-o ao momento actual (Governo de Santana Lopes). Não estando em questão o discurso ou argumentos usados, nesta apreciação particular de José Gil, vemos o filósofo ceder a um dos principais defeitos que apontou à sociedade no seu livro: a mediatização.
Resumindo, trata-se de um ensaio muito interessante sobre a sociedade actual, e particularmente sobre o «português», com a ressalva, tal como o próprio José Gil faz nas notas finais do livro, que não se trata apenas do «português». Deprimente talvez para muitos, pelo apontar sistemático das características mais negativas da sociedade actual, é um sinal de alerta e lucidez para o despertar de consciências e para que «consigamos» sair do nevoeiro existencial que caracteriza a «não-inscrição» dos portugueses e, certamente, todas as vítimas das democracias totalitárias, como definido por Hannah Arendt, da sociedade ocidental.