Opinião
O segundo romance de Magnus Mills, depois da estreia com 'O Curral das Bestas', mantém bastantes semelhanças com o anterior, embora, na minha opinião, proporcione uma leitura ainda mais interessante.
Falemos então das semelhanças ou, se preferirem, do "estilo Magnus Mills", uma vez que já li outras obras dele que penso não estarem ainda disponíveis em português, como 'Only When The Sun Shines Brightly' e 'The Scheme For Full Employment'.
Em primeiro lugar, são livros passados em ambiente laboral, em que os personagens são normalmente trabalhadores pouco qualificados ou que desempenham funções pouco prestigiantes, do ponto de vista social. Em 'O Curral das Bestas' acompanhávamos o dia-a-dia de uma empresa de montagem de vedações. Em 'Nada de Novo no Expresso do Oriente' o protagonista é uma espécie de servente rural, um «pau para toda a obra», que, apesar de supostamente estar de férias, tanto pinta portões como barcos ou distribui leite ao domicílio. Normalmente são ambientes muito masculinos em que as mulheres estão praticamente ausentes, excepto como objecto de desejo inacessível.
Por outro lado, há uma preferência por abordar o mundo rural que sai reforçada neste 'Nada de Novo no Expresso do Oriente'. Penso que uma das forças deste livro está na criação/descrição de uma pequena zona rural, junto a um lago, com os seus escassos habitantes e cuja actividade comercial se reduz a uma mercearia e a dois pubs. Se durante o Verão, devido às bonitas paisagens e ao lago, há muitos turistas a invadir a região, tal como o protagonista da história, no final do Verão (a acção decorre entre o fim do Verão e as proximidades do Natal), tudo volta à calma e os habitantes voltam a viver num mundo fechado sobre si mesmo.
Há ainda uma atenção obsessiva do autor aos pequenos pormenores do dia-a-dia. Tarefas aparentemente aborrecidas (e aparentemente com reduzido interesse para a literatura), tais como encomendar comida pelo telefone ou um diálogo sobre a forma de conduzir um tractor, tornam-se extremamente interessantes, provando que é possível fazer arte e criar o belo a partir de assuntos pouco interessantes. Refira-se que é mais frequente encontrar nas várias artes exemplos da situação contrária - um tema apaixonante ser tratado de forma medíocre.
Finalmente, outro toque inconfundível do autor e que encontrei em todas as suas obras é o carácter passivo e a falta de personalidade do personagem principal/narrador que é completamente manipulado, influenciado e condicionado pelos outros personagens e pelos acontecimentos. Chega por vezes a ser exasperante imaginar que possa existir alguém que não consegue impor-se minimamente aos outros e exigir deles o que é razoável em cada situação.
Os protagonistas são também pessoas de quem se sabe muito pouco para além do presente.
A principal diferença entre este 'Nada de Novo no Expresso do Oriente' e 'O Curral das Bestas', é a ausência de crimes (acidentais ou não). Embora haja um desaparecimento (Deakin desaparece nas águas do lago), seria incorrecto, na minha opinião, catalogar este livro como um romance de humor negro.
Em resumo, a grande força desta narrativa reside principalmente na descrição da vida rural e dos seus personagens. Trata-se de uma comunidade muito fechada e que vive praticamente em auto-suficiência. Um dos aspectos mais interessantes do livro é que todos os habitantes teceram uma teia de favores e de ajudas mútuas que os faz dispensar as transacções monetárias. E o personagem principal/narrador vai também ver-se envolvido nesta teia.
Para além das descrições físicas da região (Noroeste de Inglaterra), os habitantes locais são extremamente castiços e muito bem retratados:
Tommy Parker (o proprietário do parque de campismo e «patrão» do personagem principal, que está sempre à procura de um bom negócio), Gail Parker (a sua filha, desejosa de fazer 16 anos para poder abandonar os estudos), John Picthall (o velhinho obcecado por trabalho e que faz questão de aparecer para dar sempre uma ajuda), John Picthall Jr. (o filho de Mr. Pickthall, pessoa de poucos amigos e que não quer ver o pai a trabalhar), Kenneth (o mecânico da terra), Hodge (o dono da única mercearia), Tony (o barman de um dos dois pubs da terra), Lesley (a rapariga gira da povoação vizinha com quem o protagonista terá perdido uma boa oportunidade) e claro Bryan Webb (um proprietário rural que anda sempre com uma estranha coroa de cartolina na cabeça).
Depois há ainda os forasteiros: para além do protagonista/narrador, surgem Deakin e Mark/Marco. Deakin é uma espécie de cópia do protagonista e o seu desaparecimento involuntário vai abrir caminho à sua substituição definitiva. Ao invés, Mark (ou Marco como gosta de ser chamado) é o negativo do narrador.
Recomendo vivamente este livro, principalmente em ambiente de férias.
Excerto
- Quer feijão enlatado, é isso? - perguntou.
- A loja está aberta, então?
- Aberta todos os dias - disse ele. Às Quartas fecho mais cedo.
- Ah, pois. Certo. Então, sim, feijão enlatado, se faz favor.
Foi à prateleira onde estava o feijão em lata e disse: - Está com sorte. São as duas últimas latas.
- Ah. Mas vai receber mais, não vai?
Sorriu alegremente e bateu palmas: - Sinto muito, mas não.
- Então porquê? - perguntei-lhe.
- Fora de época, ninguém os compra. Não vale a pena estar a abrir outro caixote.
- Mas eu vou ficar por cá mais um tempo, e de certeza que vou comprar mais.
- Ah, isso é o que todos dizem.
- Quem?
- As pessoas que aqui entram a pedir coisas.
- Ou seja, os clientes.
- Chame-lhes o que quiser - disse Hodge. - Este ano acabaram-se os feijões.
- E essa é a sua decisão final?
- Pode ter a certeza.
- Está bem, pronto.
Gostava de ter abandonado a loja sem comprar nada, mas infelizmente não havia outro sítio. Não tinha alternativa: tinha de comprar as duas latas de feijão e outros produtos essenciais, mas saí decidido a não voltar. Quando cheguei a casa, lembrei-me de um anúncio que vira numa das edições da Gazeta do Comerciante. Demorei algum tempo a encontrá-lo porque as páginas eram muitas e distraía-me sempre com outros anúncios, mas por fim lá encontrei o que queria. O anúncio dizia:
MERCEARIA ENTREGUE AO DOMICÍLIO. SEM ENCOMENDA MÍNIMA.
Havia um número de telefone local e à tarde fiz uma lista; liguei da cabina telefónica a caminho do pub. Tive de deixar tocar durante uns vinte minutos antes de ser atendido por uma voz de homem.
- Estou, sim?
- Fala da mercearia que faz entregas ao domicílio?
- Talvez - disse a voz. - Quem fala?
- Aaaa... Vou ficar por uns tempos no chalé da propriedade do senhor Parker.
- Ai sim?
- E gostaria de saber se podia fazer uma encomenda.
- Só vamos para esses lados às terças e quintas.
- Não faz mal - disse eu.
- E a encomenda tem de ser feita dois dias antes.
- Está bem.
- Então, assim sendo, diga lá a sua encomenda.
- Obrigado.
- Espere só um bocadinho que vou buscar com que escrever.
Enquanto esperava, pensei que aquele homem tinha uma atitude bastante parecida com a de Hodge em relação aos clientes. Tive praticamente de o convencer a vir entregar-me a encomenda e agora não tinha à mão o livro de encomendas. Quando finalmente voltou ao telefone, ouvi-o suspirar longamente antes de dizer:
- Pronto. Então diga lá.
- Certo. Aaaa... Pão fatiado.
Silêncio.
- Quer «pão fatiado» ou «aaaa... pão fatiado»?
- Pão fatiado.
Outro silêncio enquanto ele tomava nota.
- E que mais?
- Chá.
- Sim.
- Açúcar.
- Sim.
- Tem daquelas empadas que vêm em pacotes individuais e se levam ao forno?
- Temos, sim senhor.
- Então quero três, se faz favor.
Suspirou mais uma vez; vários segundos se passaram, durante os quais só ouvi o barulho do lápis.
- Sim - disse por fim.
- Cinco quilos de batatas.
Nessa altura, uns sinais avisaram-me que o meu dinheiro estava a acabar. Inseri outra moeda e seguiu-se um longo silêncio.
- Estou? - disse eu.
- Estou.
- Percebeu a última coisa?
- O quê?
- Cinco quilos de batatas.
- Sim, sim - respondeu, impaciente. - E que mais?
- Queria também bolachas.
- Sim?
- Que bolachas tem?
- De todos os tipos.
- Ah, está bem. Então queria dois pacotes de bolachas com recheio de figo.
- Não, dessas não temos.
- E com recheio de nata?
- Não.
- E de baunilha?
Os sinais recomeçaram. Voltei a pôr uma moeda; seguiu-se um silêncio uma vez mais.
- Estou?
Nada.
Desliguei pouco depois e voltei a marcar o número, mas desta vez ninguém respondeu.
***