Opinião
Num misto de romance autobiográfico e ensaio, o narrador encarna a personagem de um programador informático na casa dos trinta anos, profundamente desiludido com a vida e caindo aos poucos numa verdadeira depressão que se irá depois manifestar através de actos incontrolados. A sua existência é um completo vazio, vivendo sozinho após algumas relações infrutíferas, desempenhando o seu trabalho o melhor possível dentro do exigível, caricaturando de forma maioritariamente negativa e redutora os seus colegas e os clientes com quem tem que se relacionar ao ser-lhe atribuído um projecto que envolve formação em diversos locais.
Para essa formação é destacado, além dele, um colega que é caracterizado como sendo alguém extremamente feio e repelente, que vive a frustração de não conseguir arranjar uma parceira, e obcecado com constantes tentativas de engate em qualquer situação em que se encontre, sempre sem sucesso - virgem aos vinte e oito anos. Os episódios sucessivamente negativos irão levar a um caricato e fatal desenlace onde uma faca de talho comprada pelo narrador é parte determinante, embora não literalmente, do mesmo.
Ao longo do romance, o narrador deixa alguns textos que representam uma espécie de ensaios, envolvendo animais ou conversas entre animais, centrados nas temáticas da existência e da sexualidade, num misto de lucidez e crueldade, em face da feroz competição e discriminação que existem na sociedade actual. Segundo o autor, é consequência do preço que se tem que pagar pela liberdade que supostamente existe e que exige que cada um ambicione o melhor, causa primeira para uma extensão do domínio da luta, onde ninguém consegue ficar satisfeito com o que tem ou adquire, e onde muitos nem sequer podem chegar a tanto por limitações de carácter material, sexual, ou social (por serem vítimas de discriminações de todo o tipo). Ainda, uma interessante tese sobre como a adolescência representa o melhor período da vida e a partir dessa altura esta é apenas uma preparação para a morte, é depois complementada com alegorias com animais: uma onde um animal fica preso num espaço extremamente pequeno e acaba por se suicidar indo contra as paredes, mas que hesita se à frente dele estiver um precipício, e outra alegoria sobre um macaco que é barbaramente morto numa sociedade de cegonhas após dissertar sobre o capitalismo. Retratos perturbadores mas simultaneamente representativos de uma visão não assim tão irreal de grande parte da sociedade actual.
A forma como o narrador observa e descreve as pessoas e os espaços sociais que frequenta é bastante acutilante e revela perspectivas do real que dão conta da degradação da civilização actual, de uma forma original e interessante (a descrição da baixa de Rouen é um exemplo sintomático). Contudo, essa lucidez dá origem a uma espiral depressiva que o leva a estar cada vez mais perdido e sem qualquer interesse em continuar a viver, embora a intensidade com que vive pequenos momentos aparentemente sem importância revele uma capacidade apurada de saber desfrutar a vida, apesar do espírito angustiado.
Acusado por um psicólogo de abstrair demais as suas depressões generalizando os seus pensamentos como padrões para toda a sociedade (e dessa forma fugir ao encontro consigo próprio), é abandonado pelo mesmo quando tenta fazer uma abordagem directa envolvendo a sua própria pessoa, assim como abandonado pela ex-mulher quando, após ter ido parar ao hospital por excesso de medicamentos, é acusado de egoísmo por quem era ainda mais egoísta do que ele a todos os níveis.
Concluindo, um romance muito interessante não só pela forma original como está escrito e onde vários tipos de construção de narrativa ou dissertação são utilizados, revelando a criatividade literária múltipla do escritor, evidenciada ainda mais pelas abordagens filosóficas e sucintas no meio de um curso narrativo sem monotonia e bastante objectivo, romântico até não obstante o discurso pessimista e depressivo.