Opinião
Um romance simultaneamente macabro no seu enredo e belo em termos de estrutura narrativa, «Sangue Sábio» ilustra a ultrapassagem dos limites dos pensamentos e comportamentos humanos fortemente influenciados por crenças, paranóias e obsessões num meio social de baixa cultura localizado no sul dos Estados Unidos.
Hazel Homes, personagem principal, após a sua prestação no serviço militar, volta a casa, onde já não encontra ninguém, e inicia uma digressão sem destino no papel de pregador, imbuído e afectado que está, num extremo de quase demência psicológica, por ideias de religião em que fortemente acredita e cuja mensagem pretende fazer pensar, a de uma Igreja sem Cristo, por não lhe fazer sentido a ideia de redenção e tudo o que lhe está associada. Pelo caminho, encontra outros pregadores, uns mais genuínos e outros menos, com os quais tem confrontos de resultados tanto estranhamente lúcidos e hilariantes quanto macabros. A demência e horror de crenças e comportamentos encontram-se também noutros personagens, desgraçados na pequenez das suas visões de vida, cujas motivações e atitudes demonstram o nível a que pode chegar uma solidão fechada com um conhecimento muito limitado do mundo e da vida, existências vazias mas extremadas em ideais mesquinhos ou simplesmente absurdos.
O sangue sábio que dá o título ao livro é a denominação principal que se dá às motivações absurdas de outro personagem do romance, o qual, obcecado por um anão embalsamado e pelo sinal divino que acredita que Hazel Mozes lhe deu, comete um pérfido acto com contornos mórbidos e resultados traumatizantes (até para o leitor menos preparado).
Hazel Mozes, com sucessivas desilusões na sua curta carreira como pregador, vítima ainda de episódios muito insólitos além dos criados por ele próprio, vai entrar num marasmo cada vez mais louco que lhe tira o controle de ele próprio, precipitando-o num vazio cada vez maior sem qualquer hipótese de retorno até ao sórdido resultado final.
Concluindo, um bom romance que tanto vale pelo explorar dos limites da condição humana em termos psicológicos como pela fluidez cativante e grande nível de escrita de Flannery O'Connor. Com muita ironia, sarcasmo e subtilezas servidas de forma simultaneamente muito séria e divertida. Não aconselhado a quem se impressione facilmente devido às muitas descrições arrepiantes de degradação humana, embora soberbamente expostas sem exploração de detalhes sórdidos como apenas um grande autor sabe fazer.