Opinião de Leitura
Extinção Extinção

Autor: Bernhard, Thomas

Leitor: Paulo Neves da Silva

Opinião

Um grande romance que se sente quase como uma auto-biografia, «Extinção» é um longuíssimo monólogo sem pausas nem capítulos apesar das mais de quinhentas páginas que estão divididas em duas partes, intituladas «O Telegrama» e «O Testamento», onde o narrador revela uma arte original e um estilo único, quase musical pelo ritmo criado, ao conseguir cativar e prender o leitor num enredo que gira em torno da notícia da morte simultânea dos pais e do irmão, e do consequente funeral, num retrato extremamente crítico aos valores e costumes da Áustria da segunda metade do século XX, estendendo-o à cultura Alemã desse mesmo século e de um modo geral a grande parte da Europa.

Possuidores de uma grande propriedade na Áustria, Wolfsegg, cedo Franz-Josef (o narrador) se desligou dos valores da família, enveredando por uma vida intelectual e refugiando-se em Roma onde a sua única actividade laboral era dar lições de literatura alemã a um jovem chamado Gambetti. Ao receber em Roma o telegrama a anunciar a morte dos pais e do irmão, notícia que recebe com indiferença, Franz-Josef, durante toda a primeira parte do livro, faz os mais variados tipos de análise sobre os elementos da sua família e divagações filosóficas sobre si próprio e sobre a sociedade em geral, até à sua decisão final de apanhar o comboio de volta a Wolsegg. Caracterizados por uma matriz simultaneamente católica e nacional-socialista, a família de Franz-Josef é ridicularizada e desprezada ao detalhe, num enquadramento onde cabe toda a nação austríaca, alegada protectora do nazismo e dos seus carrascos mesmo após a queda do mesmo.

Na segunda parte do livro, Franz-Josef desloca-se a Wolsegg para assistir ao funeral e decidir, à revelia das irmãs, as quais igualmente detesta, o futuro de Wolsegg, do qual ele é o único herdeiro. Por meio de imensos comportamentos estranhos próprios de um homem solitário e quase anti-social, movido por imensas animosidades com as pessoas com quem tem que lidar neste seu regresso, cedo se geram conflitos surdos sem consequências numa paz podre que Franz-Josef pacientemente atura para no final tomar a decisão que no fundo todos mais receiam, como castigo por todas as vítimas causadas pelos ideais católico-nacional-socialistas tais como relatados pelo narrador.

Movido por um declarado instinto de extinção de toda a cadeia de valores onde nasceu, defensor de uma arte do exagero como forma de superação de si próprio, acérrimo crítico em vertentes diversas que chegam quase à paranóia, com destaque para a vulgarização provocada pela técnica da fotografia e das imagens em movimento, do teatro reinante na sociedade do trabalho, do papel decadente dos jornais e dos jornalistas, da pobreza da literatura alemã do século XX (incluindo Thomas Mann), Franz-Josef revela-se um homem desesperado mas aparentemente calmo em toda a destruição da História do passado recente e do próprio presente, onde critica todos os tiques de modernidade que se revelam nos nossos dias, numa homogeneização estéril de tudo pelo nível mais baixo, pela massificação de uma cadeia de valores provincianos e básicos numa redoma de progresso aparente.

Apesar de tudo, Franz-Josef transparece como uma pessoa extremamente sensível mas, afectado por toda uma cultura literária que cedo abraçou e que enaltece citando diversos autores e as suas obras, torna-se um deslocado social vítima de uma lucidez cega própria que, ajudando-o a conhecer e a explorar as profundezas de si próprio e dos outros, e dos verdadeiros valores éticos que deviam mover o mundo, encontra-se perdido neste, embora solidamente refugiado no alto da sua sabedoria humilde, partilhando-a e ampliando-a com poucas pessoas numa tímida ambição de escritor ou de alguém que crie algo eterno à imagem dos artistas que admira, como realização de uma vida distanciada das motivações vulgares e perenes dos seus contemporâneos.

Excerto

Nós deixamo-nos muitas vezes arrebatar de tal modo por um exagero, disse eu mais tarde a Gambetti, que tomamos depois esse exagero pela única realidade lógica e já de modo algum nos apercebemos da verdadeira realidade, só do exagero desmedidamente levado às alturas. Com este fanatismo do exagero sempre eu me satisfiz, disse eu a Gambetti. É por vezes a única possibilidade, designadamente sempre que fiz do fanatismo do exagero a arte do exagero, de me salvar da miséria do meu estado de espírito, do meu tédio intelectual, disse eu a Gambetti. Adestrei de tal modo a minha arte do exagero que me posso nomear à vontade o maior artista do exagero que eu conheço. Não conheço mais nenhum. Niguém levou assim tão longe a sua arte do exagero, disse eu a Gambetti e, logo a seguir, que eu, se me perguntassem uma vez sem rodeios o que é que eu sou verdadeiramente e no íntimo secreto, só poderia responder, o maior artista do exagero que eu conheço. Em seguida Gambetti desatou outra vez a rir com o seu riso de Gambetti e com esse seu riso de Gambetti me contagiou e assim rimos os dois no Pincio, nessa tarde, como nunca antes tínhamos rido. Mas também esta frase é naturalmente um exagero, penso eu agora, enquanto a escrevo, e uma característica da minha arte do exagero. Nessa altura disse eu a Gambetti que a arte do exagero era uma arte da superação, de superação da existência no meu sentido, disse eu a Gambetti. Por meio do exagero, e afinal da arte do exagero, aguentar a existência, disse eu a Gambetti, torná-la possível. Quanto mais vou avançando na idade, mais me refugio na minha arte do exagero, disse eu a Gambetti. Os grandes superadores da existência foram sempre grandes artistas do exagero, seja o que for que tenham sido, que tenham criado, Gambetti, eles foram-no afinal só pela sua arte do exagero. O pintor que não exagera é um mau pintor, o músico que não exagera é um mau músico, disse eu a Gambetti, como o escritor que não exagera é um mau escritor, podendo também acontecer que a verdadeira do exagero consista em tudo atenuar, nesse caso temos de dizer, ele exagera a atenuação e faz assim da atenuação exagerada a sua arte do exagero, Gambetti. O segredo da grande obra de arte é o exagero, disse eu a Gambetti, o segredo do grande filosofar é esse também, a arte do exagero é de modo geral o segredo do espírito, disse eu a Gambetti.

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