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Opinião de Leitura
A Queda A Queda

Autor: Camus, Albert

Leitor: Paulo Neves da Silva

Opinião

Um monólogo que soa a ensaio, numa armadilha em que o narrador leva o leitor a se sentir na sua própria pele, «A Queda» relata a história de um homem que julgava ser muito feliz, de bem com o mundo e com toda a gente, generoso e um exemplo de como se deve estar na vida, mas que, no entanto, ao fim de algum tempo descobriu que tudo isso não passava de uma ilusão, que afinal não tinha amigos e não sabia usufruir do amor, pois todos os seus actos não passavam de actos de vaidade e que toda a gente o julgava de forma impiedosa e o culpava independentemente da sua acção ou inacção.

Com dissertações muito bem conseguidas sobre o amor, a amizade, a inveja, a necessidade de domínio, a servidão, a necessidade de julgamento e culpabilização, e o cerne da religião, Camus explora em profundidade as facetas negras do ser humano numa bola de neve que culmina na assunção de que a Humanidade só se salva quando todos se sentirem culpados e desta forma todos se ajudarem uns aos outros em pé de igualdade, algo que num sistema de liberdade individual não é possível.

Sob as máximas de: «...quando formos todos culpados, será a democracia...», «...estender o julgamento a toda a gente, para o tornar mais leve aos próprios ombros...», «...já que não podíamos condenar os outros sem imediatamente nos julgarmos, tínhamos de nos inculpar a nós mesmos para termos o direito de julgar os outros...», «...sem deus e sem senhor o peso dos dias é terrível...», «... todo o mundo será salvo e não apenas os eleitos...», toda a liberdade individual é refutada a favor de um nivelamento medíocre, porque sendo medíocre o homem nunca consentirá que algum se torne maior do que ele num sistema igualitário que seria rapidamente corroído pelo julgamento e pela inveja, geneticamente que está predisposto para dominar e ser servido ou então servir na ambição de vir a dominar, numa luta sem quartel que evoca a condição animal de todo o homem.

Constituindo-se uma sátira ou um relato irónico sobre a existência humana, o riso impera sobre todo aquele que tenta levar-se demasiado a sério, vítima do julgamento dos outros e da sua própria sobranceria ainda que inconsciente, e o instinto do mal revela-se a cada esquina e em cada situação em que está em causa a sobrevivência de cada um, independentemente da condição social em que se encontre.

Um pequeno livro que leva muito pouco tempo a ler mas certamente imenso tempo a compreender pela temática diversa e densa mais os paradoxos intrínsecos à personagem principal, que, se no final até pode ser compreendida no percurso que relatou, ao ser-nos atirados à cara a redenção da mesma como equivalente à nossa, mil e uma reflexões se podem tomar, quer a nível individual quer a nível da humanidade, num exercício salutar embora com uma base negativista profunda, lúcida porém, que abre os olhos para um melhor conhecimento e questionamento de nós próprios e uma atitude mais consciente dos nossos actos e da nossa vida.

Excerto

Uma vez desperta a minha atenção, não me foi difícil descobrir que tinha inimigos. Na minha profissão, em primeiro lugar, e depois na minha vida social. A uns, tinha prestado serviços. A outros, deveria tê-los prestado. Tudo isso, em suma, estava na ordem das coisas, e descobri-o sem grande mágoa. Em contrapartida, foi-me mais difícil e doloroso admitir que tinha inimigos entre pessoas que mal ou absolutamente nada conhecia. Sempre tinha pensado, com a ingenuidade de que já lhe dei algumas provas, que os que não me conheciam não poderiam deixar de gostar de mim, se chegassem a privar comigo. Pois bem, nada disso! Encontrei inimizades sobretudo entre os que não me conheciam senão muito por alto, e sem que eu próprio os conhecesse. Suspeitavam, sem dúvida, de que eu vivia em plenitude e num livre abandono à felicidade: isso não se perdoa. O ar do êxito, ostentado de uma certa maneira, é capaz de pegar raiva a um asno. A minha vida, por outro lado, estava cheia a transbordar, e, por falta de tempo, eu recusava muitas oportunidades! Esquecia em seguida, pela mesma razão, as minhas recusas. Mas tais oportunidades tinham-me sido oferecidas por pessoas cuja vida não era plena, e que, por esta mesma razão, se lembravam das minhas recusas.
Era assim que, para dar apenas um exemplo, as mulheres, no fim de contas, me ficavam caras. O tempo que lhes consagrava, não o podia dedicar aos homens, que nem sempre me perdoavam. Como sair disto? Não nos perdoam a nossa felicidade, nem os nossos êxitos, senão no caso de consentirmos generosamente em reparti-los. Mas, para se ser feliz é preciso não nos ocuparmos muito dos outros. As saídas ficam, pois, cortadas. Feliz e julgado ou absolvido, e miserável. Quanto a mim, a injustiça era maior: eu era condenado por causa de felicidades antigas. Tinha vivido durante muito tempo na ilusão de um acordo geral, quando de todos os lados choviam sobre mim, distraído e sorridente, os juízos, as flechas e os remoques. A partir do dia em que fiquei alerta, veio-me a lucidez, recebi todos os ferimentos ao mesmo tempo e perdi de uma só vez as minhas forças. O universo inteiro pôs-se então a rir à minha volta.

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