Opinião
Numa mistura de diário, ficção, biografia, ensaio e auto-biografia, "O Mal de Montano" é um riquíssimo tratado de literatura tanto pela obra em si, a sua estrutura meio caótica e formas variadas de narrativa, tal como por todas as considerações, menções biográficas, fantasias e citações que o autor faz de dezenas de outros autores mais os seus pensamentos, maneiras de estar na vida e na literatura.
Tomando como mote o vício da literatura, algo que o autor pretende tentar largar pois impede-o de viver a vida, tenta fazê-lo ao mesmo tempo que ajuda o seu filho (intitulado Montano) a retomar o gosto à escrita após o último romance que escreveu sobre escritores que deixaram a escrita e que o contaminou. O primeiro capítulo é uma mirabolante ficção que culmina no assumir da missão de salvar a literatura que se encontra condenada à morte nestes tempos modernos por toda uma falsa indústria editorial e respectivos consumidores de pretensos livros que destes apenas retêm a forma, vazios que estão de uma literatura que possa assumir esse nome.
Continuando a sua missão de salvamento da literatura, Vila-Matas dedica o segundo capítulo do livro a um intitulado dicionário do tímido amor à vida, em que, baseado na experiência de diarista de grandes autores tais como Amiel, Dali, Gide, Gombrowicz, Kafka, Manfield, Maugham, Michaux, Pavese, Pessoa, Pitol, Renard e Valéry, disseca e intersecta as características destes com as suas, vindo ao de cima o aprofundar das motivações dos escritores de todos os tempos e a interpretação tornada simples de personalidades complexas, mais o escalpelizar dos meandros que constituem as raízes da genialidade, afogadas num viver distorcido (e frequentemente diminuído) da realidade que no entanto lhes dá uma visão lúcida da existência, paradoxo que constitui simultaneamente a glória e a cruz de (quase) todos os escritores imortais.
A saga de Vila-Matas não pára, seguindo-se um terceiro capítulo que tem como base uma conferência acerca do diário como forma narrativa em que o autor simula (?) um drama passional em torno dele mesmo, defendendo várias abordagens à escrita de um diário em que a sinceridade e os factos devem ser factores secundários (até a evitar!) se se quiser escrever um grande diário; Vila-Matas enceta num quarto capítulo a saga de escrita de um diário de um homem enganado, continuando a mirabolante cascata de cruzamentos entre realidade e ficção, e menções múltiplas de experiências dos mais variadíssimos autores, sendo recorrentes as presenças de Musil, Walser, Pessoa e Kafka, até com diálogos com alguns destes.
Num curto quinto capítulo final, o derradeiro encontro com Musil coroa as intenções de Vila-Matas de salvar a literatura, mantendo a porta aberta de um mundo que multiplica exponencialmente os horizontes do homem a quem nele enveredar, cegando-o porém num distanciamento do quotidiano viver, extremos para os quais o compromisso parece não ser possível, se se quiser viver em pleno quer uma existência quer outra. Entre o mal de Montano e o mal de viver, Vila-Matas desvenda o ténue fio que permite navegar entre esses extremos no máximo de conhecimento de nós próprios, através da experiência dos escritores e dele próprio.
Excerto
A companhia da literatura é perigosa, tanto que eu, por vezes, a pessoas que aprecio não vejo motivos nenhuns para lhes aplaudir que leiam muito e penetrem tanto nos livros, e o que lhes desejo é o Bem, e qualquer um que tenha lido por exemplo Kafka conhece perfeitamente «quanta angústia excessiva para nada» (como dizia Pessoa) há na literatura.
Como diz Magris: «Kafka sabia perfeitamente que a literatura o afastava do território da morte e permitia-lhe compreender a vida, mas deixando-o de fora. Assim como lhe permitia compreender a grandeza do padre judeu, modelo de homem, mas não lhe permitia precisamente sê-lo.»
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, deixa-nos fora dela. É duro, mas às vezes é o melhor que nos pode acontecer. A leitura, a escrita, buscam a vida, mas podem perdê-la precisamente porque estão inteiramente concentradas na vida e na sua própria busca.
Talvez seja a melancolia da tarde em que estou a escrever isto, mas a verdade é que estou a falar de um nó inextricável de bem e de mal, de luzes e sombras inerentes à leitura e à literatura. Tudo isto é duro, para quê nos enganarmos. Trata-se de uma dureza que, segundo Gombrowicz, a boa literatura possui como produto de um instinto de agudizar a vida espiritual. Há dias em que recomendaria ler aos meus piores inimigos.
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, fala-nos do que pode ser mas também do que podia ter sido. Às vezes não há nada mais distante da realidade do que a literatura, que nos recorda a todo o momento que a vida é assim e o mundo foi organizado assado, mas poderia ser de outra forma. Não há nada mais subversivo que ela, que se ocupa de devolver-nos à verdadeira vida ao expor o que a vida real e a História sufocam.