Opinião
«Diário de um Mau Ano» é um misto de romance e compilação de pequenos ensaios, com uma estrutura original em que cada página está dividida em três partes: a primeira com os ensaios propriamente ditos, a segunda com o diálogo entre o escritor dos ensaios e a sua dactilógrafa, Anya, e a terceira com o diálogo entre esta e o seu marido, Alan.
O romance baseia-se na história da escrita dos ensaios, elaborados por um escritor em final de vida que assume que já não tem capacidade para escrever romances e que por isso aceitou um convite de uma editora para que participasse num livro que reune ensaios de vários escritores. Atraído por uma jovem que mora no mesmo prédio, convida-a para que seja sua dactilógrafa, sob a suspeição do seu marido de que o escritor pretenda algo mais. No desenrolar da história, criam-se e acentuam-se as divergências entre Alan e os escritos de JC, algo ingénuos do ponto de vista de Anya e completamente ultrapassados segundo o ultra-liberal Alan. À medida que se estreita uma relação de amizade e compaixão entre Anya e JC, o radicalismo de Alan acentua-se conduzindo a narrativa a uma situação de ruptura entre as personagens, num desenlace onde os valores de JC são postos à prova.
Os ensaios são pertinentes na forma como abordam as temáticas contemporâneas subjacentes (em 2007), assim como pertinentes são os comentários de Anya e Alan aos mesmos. Num jogo em que o leitor pode ser levado a pensar que as opiniões transmitidas nos ensaios equivalem às opiniões de Coetzee, os comentários das outras duas personagens a essas mesmas opinões funcionam como um contraponto, que convidam a uma reflexão e a uma chamada de atenção sobre as várias formas de abordar cada temática e as sensabilidades que podem ser tomadas relativamente à mesma, prevalecendo, nas temáticas mais explosivas, o bom senso de quem menos sabe sobre as mesmas, Anya.
Comentários
Os ensaios:
1. Sobre as Origens do Estado
2. Sobre o Anarquismo
3. Sobre a Democracia
4. Sobre Maquiavel
5. Sobre o Terrorismo
6. Sobre os Sistemas de Guiagem
7. Sobre a Al-Qaeda
8. Sobre as Universidades
9. Sobre a Baía de Guantanamo
10. Sobre a Vergonha Nacional
11. Sobre a Maldição
12. Sobre a Pedofilia
13. Sobre o Corpo
14. Sobre o Abate de Animais
15. Sobre a Gripe das Aves
16. Sobre a Competição
17. Sobre o Desígnio Inteligente
18. Sobre Zenão
19. Sobre as Probabilidades
20. Sobre os Assaltos
21. Sobre os Pedidos de Desculpa
22. Sobre o Asilo na Austrália
23. Sobre a Vida Política na Austrália
24. Sobre a Esquerda e a Direita
25. Sobre Tony Blair
26. Sobre Harold Pinter
27. Sobre a Música
28. Sobre o Turismo
29. Sobre o Uso do Inglês
30. Sobre a Autoridade na Ficção
31. Sobre a Outra Vida
1. Um Sonho
2. Sobre a Correspondência de Admiradores
3. O Meu Pai
4. Insh'allah
5. Sobre a Emoção das Massas
6. Sobre a Barafunda da Política
7. O Beijo
8. Sobre a Vida Erótica
9. Sobre o Envelhecimento
10. Ideia para uma História
11. La France Moins Belle
12. Os Clássicos
13. Sobre a Vida da Escrita
14. Sobre a Língua Materna
15. Sobre Antjie Krog
16. Sobre Ser Fotografado
17. Sobre Ter Pensamentos
18. Sobre os Pássaros do Ar
19. Sobre a Compaixão
20. Sobre as Crianças
21. Sobre a Água e o Fogo
22. Sobre o Enfado
23. Sobre J.S. Bach
24. Sobre Dostoievski
Excerto
O Estado coloca um escudo à volta da economia. Além disso, por enquanto, por falta de melhor meio, toma as decisões macroeconómicas quando precisam de ser tomadas e fá-las cumprir; mas isso é outra história para outro dia. Escudar a economia não é banditismo, Anya. Pode degenerar em banditismo, mas estruturalmente não é banditismo. O problema do teu Señor C é que não é capaz de pensar estruturalmente. Para onde quer que olhe, vê motivos pessoais em acção. Quer ver crueldade. Quer ver ganância e exploração. Para ele é tudo um jogo de moralidade, o bem contra o mal. O que ele não consegue ver ou se recusa a ver é que os indivíduos são jogadores numa estrutura que transcende os motivos individuais, que transcende o bem e o mal. Até os tipos de Camberra e das capitais dos Estados, que podem realmente ser bandidos a nível pessoal - nesse ponto estou disposto a dar a mão à palmatória -, que podem andar a traficar influências e a roubar massa à sorrelfa e a juntá-la para o seu futuro pessoal, até esses tipos trabalham dentro do sistema, quer se apercebam disso, quer não.
Dentro do mercado, digo eu.
Dentro do mercado, se quiseres. O que está para além do bem e do mal, como disse Nietzsche. Bons motivos ou maus motivos, no fim de contas são apenas motivos, vectores da matriz, que a longo prazo acabam por se nivelar. Mas o teu fulano não vê isso. Ele vem de outro mundo, doutra era. O mundo moderno está para além dele.