Opinião de Leitura
After Dark - Os Passageiros da Noite After Dark - Os Passageiros da Noite

Autor: Murakami, Haruki

Leitor: Paulo Neves da Silva

Opinião

Uma câmara vigilante sobrevoa a cidade de Tóquio desde o anoitecer ao amanhecer, captando a cidade como um organismo vivo e descendo a algumas personagens e episódios insólitos com algumas ligações estranhas entre si. Uma leitora voraz passa a noite fora de casa num restaurante, cruzando-se com um rapaz simpático que em tempos conheceu e ficou interessado pela sua irmã, irmã essa que se encontra num sonho profundo há dois anos, navegando entre o real e o irreal, através de um cenário ilusório dentro de uma televisão desligada. Estes, tais como outras personagens, uma prostituta agredida, um informático obcecado pelo trabalho e de motivações sombrias, etc, vivem, cada uma, num mundo irreal mas sintomático da fuga à realidade que é comum nos dias de hoje.

Numa narrativa ligeira e sem pontos altos, com tentativas de lançamento de mistérios e enredos interessantes que ficam pela base, o final este romance revela-se algo frustrante embora resulte uma leitura agradável. Em termos de qualidade encontra-se alguns furos abaixo de outros livros de Murakami, embora se reconheça que «Os Passageiros da Noite» representa um novo estilo na sua escrita, talvez incompreendido quer pelo leitor devoto das suas obras anteriores, quer pelo leitor que lê Murakami pela primeira vez. Apesar de tudo, uma perspectiva interessante das vidas complexas que podem existir dentro de uma grande cidade, mais a solidão característica que lhes está associada.

Excerto

- Pela parte que me toca, penso muito no passado. Sobretudo a partir do momento em que me pus em fuga através do Japão. E sempre que me esforço por recordar, vêm-me à lembrança uma quantidade de coisas... e olha que estou a falar de memórias vivas e poderosas. Coisas, que eu julgava desde há muito esquecidas, de repente surgem diante de mim sem razão aparente. Um processo muito interessante. Que coisa estranha e louca ao mesmo tempo, a memória. É como se tu enchesses uma gaveta inteira com uma quantidade incrível de coisas que não servem para nada. Ao passo que as coisas importantes, essas passamos a vida a esquecê-las, umas atrás das outras.
Korogi continua de pé, com o telecomando na mão.
- Sabes o que te digo? - prossegue ela. - Quer-me parecer que as recordações são o combustível que permite às pessoas continuarem vivas. Agora, se essas recordações têm ou não de facto alguma importância concreta, isso pouco ou nenhum significado tem desde que as funções vitais estejam asseguradas. É apenas combustível, mais nada. Anúncios nos jornais, livros de filosofia, revistas cheias de pornografia, um grosso maço de notas de dez mil ienes: quando deitas um fósforo e lhes pegas fogo, não passa tudo de papel. O fogo, enquanto arde, não pensa: «Oh, isto é Kant!». Ou: «Oh, um artigo na edição da tarde do jornal Yomiuri», ou ainda: «Ena, mas que belas mamas!». Para o fogo, são apenas pedaços de papel. Aqui neste caso é a mesmíssima coisa. As recordações importantes ou aquelas que não têm tanto peso quanto isso, umas e outras tornam-se, sem distinção, combustível.
Korogi faz uma sinalefa de concordância para si mesma, antes de prosseguir.
- Sabes, acho que se não tivesse este carburante para queimar, se não tivesse essa tal gaveta cheia de recordações dentro de mim, há muito que me teria deixado ficar caída no fundo de alguma valeta e deixado morrer. Só porque posso trazer à luz do dia as memórias que essa tal gaveta encerra - tanto as lembranças importantes como as outras - é que me aguento no balanço e consigo levar por diante o pesadelo que representa esta vida. Alturas há em que chego a pensar que já não aguento mais, mas, depois, de uma maneira ou de outra, a verdade é que consigo.

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