Opinião de Leitura
Maquinações e Bons Sentimentos Maquinações e Bons Sentimentos

Autor: Venâncio, Fernando

Leitor: António Manuel Venda

Opinião

   A crítica literária portuguesa tem sido, nos últimos anos, um terreno de muitos mistérios. Umas vezes é capaz de originar polémicas, já outras - a maioria - mostra-se tão amorfa que se poderia admitir estar à beira de desaparecer. Um dos responsáveis pelos momentos de polémicas, e quando não de polémicas sempre de muita vivacidade, é Fernando Venâncio.
   Maquinações e Bons Sentimentos é um conjunto de textos publicados por Fernando Venâncio entre 1987 e 2000 no Jornal de Letras, no Expresso e nas revistas O Escritor e Boca do Inferno. Sempre sagaz na escrita, Venâncio não se amedronta com os nomes que lhe surgem pela frente, independentemente da dimensão, seja um Luiz Pacheco, seja Eduardo Prado Coelho, com quem andou novamente às turras em 2001 nas páginas do Diário de Notícias.
   Chamo a atenção para uma pequena carta de Luiz Pacheco, enviada de Setúbal, com data de 4 de janeiro de 1995. Pacheco reza assim:
   «Prezado Confrade - Peço-lhe um grande, grande favor. Li na sua última crónica do JL que «também Cardoso Pires, e Torga, e Pulido Valente têm páginas geniais». Fiquei intrigado. Tenho aí tudo do Torga, leio e oiço o Vasco, sei do Pires mais que o comum pois fomos colegas de carteira no Liceu Camões, eu visita de casa dele, eu professor do mano Tonecas. Sendo assim, e porque na verdade é assim, colecciono tudo (mas tudo!) do melhor dessa trempe. Pergunto-me, com a provável angústia do macróbio-moribundo: ter-me-iam escapado algumas páginas tão mais geniais das que trago no álbum da minha memória? Irei para o coval, sem ter lido e aprendido tudo do que genial há nesses três? Pode V. citar-mo, em próxima crónica? Era favor. Grato.
   Luiz Pacheco»
   Venâncio começa a resposta assim:
   «Caríssimo Luiz Pacheco:
   Não se acredita. Eu todo confiado em ser, uma vez na vida, consensual, chão, acomodatício, e vem você arrancar-me as ilusões. É isso. Estava eu convencido de poder atribuir a Torga, Pires e Pulido páginas «geniais», pelo álibi de, do mesmo passo, lembrar neles algumas outras de sucinto brilho, e veja-se: nem o álibi serve, nem talvez o génio exista. Desumano, você vem pôr-nos, só de alvitrá-lo, mais pobrezinhos.
   Perdoe-me, desde já, as ousadias do tratamento e porventura da inflexão, só pensáveis por ser você a sugerir-mas. O nosso primeiro e único contacto foi há bem vinte anos, e seria excessivo presumir que você hoje o recordasse. No Largo de São Roque, em tarde ensolarada, trocámos uma dedicatória e uma nota de banco. «Levas, mas dás vinte paus.» Eu fiquei para sempre a ganhar.
   (...)»
   Ainda para citar mais um pouco de Maquinações e Bons Sentimentos, outro início de uma resposta de Venâncio, desta feita ao crítico Manuel Frias Martins:
   «Meu caro Manuel Frias Martins:
   Escrevo-te de uma casa de pasto de Amsterdão, que não te posso recomendar, onde me vejo servido de uma vitela que em vida, tudo o indica, foi suíno. Também a salada não é das mais exaltantes, mas parece fresca, e tem possivelmente ferro. Garanto-te: já vou estando conformado. Sei, na minha idade, que não se pode endireitar o mundo logo todo de uma vez. Podes, portanto, crer: não conseguiam arranjar-se melhores disposições para pôr-me a escrever-te. A mesa é grande, cabe o prato, cabem dois copos, cabe este bloco.
   Sejamos claros desde já. O mundo da nossa crítica literária é grandemente como tu, há um mês, aqui o descreveste. Não devia haver, pois, razão de festas. Mas tu pensas que sim, que a há. A tua visão da actividade crítica é, tiradas umas tantas chatices, pacífica, harmoniosa, e quase se acreditaria podermos entrar por ela no melhor dos mundos. Lamento ter de trazer-te hoje alguma desilusão.
   (...)»
   Fernando Venâncio, autor de romances como o belíssimo El-Rei no Porto, tem tido uma relevante actividade como cronista, crítico e ensaísta. Nasceu em Mértola, em 1944, mas fez os estudos primários em Lisboa. Depois estudou em Braga, no Seminário da Falperra, em Vila Nova de Ourém (Filosofia) e de novo em Lisboa (Teologia). Em 1970 viajou para a Holanda, onde se formou em Linguística Geral, na Universidade de Amsterdão. Seguiu a carreira académica em diversas universidades holandesas, doutorando-se em 1995 com a dissertação Estilo e Preconceito, A Língua Literária em Portugal na Época de Castilho (publicada pelas Edições Cosmos). Ao mesmo tempo que lançou na Campo das Letras este Maquinações e Bons Sentimentos, viu também surgir nas livrarias um outro título de cariz semelhante, Objectos Achados - Ensaios Literários, nas Edições Caixotim.

   [Texto retirado da página de António Manuel Venda, www.antoniomanuelvenda.com, Secção 'Crónicas - O Livro da Semana', 15.07.02-21.07.02]

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