Opinião
Clarice Lispector estreia-se, em 1944, com o romance Perto do Coração Selvagem e deixa leitores e crítica perplexos com tamanha inovação da escrita, com tal domínio do Verbo. Perplexidade multiplicada com a revelação de que esta estreante no mundo das letras contava apenas 19 Primaveras. Laços de Família surge 16 anos depois, em 1960, como quinto livro de uma autora que já nasceu matura. A palavra é barro pronto a moldar pela pena de Clarice, o resultado são algumas das mais belas e inesperadas peças de artesanato que formam o panteão da literatura mundial. É injustíssima a indeferença que esta precoce artista tem no nosso país, pátria-mãe da língua que a escritora molda exemplarmente. Ao longo dos treze contos que dão corpo a este livro Clarice, no seu melhor (como em tudo o que escrevia), leva-nos de forma arrebatadora por um mundo que é o nosso, mas que nos vamos apercebendo que não conhecemos. As personagens não são complexas, cabem em poucas palavras, mas são complexas as suas experiências. Uma escrita em tudo original, mas onde se lêem marcas da náusea de Sartre. Um mundo gasto "tão rico que apodrecia", mas mais podre ainda por dentro. O mundo dentro das personagens, o mundo que atravessa cada um de nós e ao qual fugimos e que fingimos ou preferimos ignorar.
Um livro que não basta ler, não basta, sequer, reler uma só vez. Um livro cuja primeira leitura é já uma releitura de nós mesmos, por isso nos vai tirando o fôlego em cada conto, pelo menos até que atinjamos o climax de cada pequena história que se vai desenrolando ao sabor do que nos surpreende sem que consigamos, a "olho nú", de forma imediata, vislumbrar o que verdadeiramente nos incomoda ali, o que mexe connosco, o que nos faz pensar...
Clarice Lispector é, desde já, proibida aos consumidores compulsivos de literatura ultra-light (leia-se Paulo Coelho ou Margarida Rebelo Pinto), seria o mesmo que dar Lobo Antunes a quem nunca leu nada além de Patinhas - uma violência.
Clarice Lispector, desde já obrigatório a quem sente amor à palavra, a quem a quer ler revestida de todo o seu esplendor, a quem quer ler imagens que jamais imaginou que alguém pudesse descrever, mas que só lerá verdadeiramente o que não se deixar cegar pelo esplendor e conseguir penetrar nas entranhas da realidade crua dum "mundo tão rico que apodrecia". Será de Clarice o/a que conseguirem sentir na garganta "a náusea(...) como se estivesse grávida e abandonada".
«As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam mostruosas.»