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Opinião de Leitura
Doutor Fausto Doutor Fausto

Autor: Mann, Thomas

Leitor: Paulo Neves da Silva

Opinião

Doutor Fausto é mais uma obra-prima de Thomas Mann, ao mesmo nível que uma Montanha Mágica, que, desta vez, surpreende pelas intensas dissertações filosófico-teológico-musicais, particularmente sob a forma de introspecção e diálogo entre os vários personagens do romance, entre os quais o próprio narrador, Serenus Zeitblom, assim como a personagem-chave sob a qual o primeiro escreve a sua biografia, Adrian Leverkhun. Pois sob a forma de narrativa biográfica decorre este romance, misturado com reflexões do próprio narrador sobre a magnifica e trágica epopeia do seu grande amigo, ao mesmo tempo que descreve com particular tristeza a queda da Alemanha na segunda Guerra Mundial e o que esta queda representa de embaraço e enterro definitivo dos ideais da Alemanha de antes da era do nazismo.

Leverkhun e Zeitblom crescem os dois no mesmo ambiente académico, em que ambos enveredam pelos estudos filosófico-teológicos, debatendo ideias e conhecendo professores e personagens com ideias bem definidas quando à religião. Kumpf, um teólogo relativamente liberal, que satiriza acerca do Diabo com uma grande naturalidade. Schleppfuss, o purista que assusta com a sua implacável visão da necessidade da existência do mal e do pecado, por forma a que o homem seja completo na sua força de vontade de adoração ao divino.
Ainda, desde muito cedo, Leverkhun apercebe-se da sua forte vocação para a música, para a composição da mesma e a pureza matemática e simultaneamente divina (mais tarde, também, profana) com que a mesma se pode construir. Sob a influência de Kretzschmar, um compositor da sua cidade que tenta, embora com pouca receptividade por parte da população, revelar às pessoas os múltiplos encantos da música e as mais variadas formas da sua expressão, principalmente ao nível do divino, Adrian sente-se, a pouco e pouco, levado para esta via que se lhe mostra como única via de procurar construir uma verdade consistente para a sua vida e para os outros, de forma mais segura que a pura via filosófico-teológica.

O abraçar definitivo de Leverkhun pela música inicia a sua tragédia. Com sucessivas investigações e dissertações com o seu amigo sobre a música, sobre alguns dos maiores compositores, e as suas motivações, vai começando a compor as suas primeiras obras, e, a pouco e pouco, embrenhando-se cada vez mais na dialética divino-profano da sua música.
A tal ponto chega que se vê definitivamente mergulhado na conjugação herética da evocação do divino e do profano nas suas composições, lado a lado, como dois inseparáveis componentes da explicação da existência humana. O seu caminho está traçado - o Diabo interessa-se por ele, e, depois de um aterrador diálogo com Leverkhun, estabelece um pacto com ele. Esse pacto permite-lhe criar as mais assombrosas obras-primas, o Apocalipsis e a Lamentação do Doutor Fausto, que causarão uma grande polémica em todo o círculo cultural da Europa da altura. Mas o preço que Leverkhun vai pagar é abissal, sendo o Diabo implacável na cobrança da sua dívida....

Pelo meio, a vivência de Leverkhun com outros seus contemporâneos, que lhe vão marcando a existência, pelo círculo social no qual poucas vezes aparece mas onde é reconhecida a sua erudição e que vão acompanhando a ascensão do compositor.
O romance tem essencialmente duas partes. O percurso de iniciação dos conhecimentos de Leverkhun na área filosófica-teológica, com as suas primeiras experiências na composição musical e a produção das suas primeiras pequenas obras, e, após o pacto com o Diabo, aproximadamente a meio do livro, o desencadear rápido de todas as consequências desse acto. Realce ainda para um conteúdo mais denso a nível de debate de ideias de filosofia, teologia, e, sobretudo, composição musical (não se assuste quem não estiver por dentro destes assuntos, particularmente da música, uma vez que Mann consegue transmitir-nos a lógica e sentimento associado aos conceitos sem que tenhamos que a perceber); e um estilo mais livre, mais ao estilo do romance no seu verdadeiro sentido, na segunda parte do livro, que, por essa razão, se lê com maior velocidade que a primeira.

"Doutor Fausto" é uma interrogação a nós próprios sobre o papel do homem no mundo, e sobre o valor do divino, do bem e do mal, que existe desde o princípio dos tempos. A busca do sentido da "verdade", da pura verdade, alicerçada neste caso na composição musical, que usando formas absolutamente fixas, pode, nas suas inúmeras variações, simular a existência de um caos infinitamente organizado mas que tanto pode aludir a algo de divino como a algo de profano. Assim como o papel do homem na vida, constantemente em luta consigo mesmo e com os outros, tão facilmente se sente em perfeita harmonia ou em desarmonia, sem muitas vezes se aperceber até que ponto estará mais do lado bom ou do lado mau, confundindo muitas vezes o lado bom com o Diabo e o lado mau com Deus, tantas vezes de forma inconsciente, tantas vezes com consequências trágicas para a humanidade.

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