Opinião
Coetzee volta a surpreender-me com este livro, consegue prender-nos a uma história em que aparentemente nada acontece, em que o tempo se limita a fluir pela vida de Michael K. De escrita depurada, certeira e com mestria o autor aborda de forma aparentemente simples questões que nos lembram Dostóievski ou Kafka. De pendor mais reflexivo ou talvez mais filosófico, “A Vida e o Tempo de Michael K” oferece-nos um olhar sobre a vida que escolhemos levar e a vida que poderíamos ter. Será que podemos realmente escolher a vida que queremos levar? De como a liberdade é algo tão inacessível quer se seja escravo quer se seja o senhor.
Michael K é um homem de cerca de trinta anos, pouco inteligente, com lábio leporino e que tenta fugir com sua mãe a uma África do Sul em guerra. Durante a fuga para o Karoo, na província, a mãe acaba por sucumbir e Michael fica sozinho, é perseguido e várias vezes internado em campos de trabalho ou hospitais. Michael K só queria viver a sua vida da forma que tinha escolhido. Queria viver em liberdade.
Numa segunda parte, a narrativa é feita pela voz de um médico que tenta redimir-se da culpa ajudando Michael, tentando compreender por que este não quer alimentar-se, por que não lhe interessa sobreviver. Mas a lógica do opressor é “Come, faz-te forte, para poderes obedecer às ordens, para poderes gastar as tuas forças outra vez, obedecendo”.
Depois de ter lido à Espera dos Bárbaros, A Desgraça e Vidas de Animais, revejo nesta novela alguns dos temas caros a Coetzee: a opressão racial na África do Sul, a questão do dominador versus dominado, uma certa ética ecológica (patente na forma como Michael queria viver da terra, em harmonia ou na sua repugnância em matar animais de grande porte).
Comentários
J.M. Coetzee - Prémio Nobel em 2003
Excerto
Quero viver aqui, quero viver aqui para sempre, onde viveram a minha mãe e a minha avó. Só isso. É pena que para viver, nos tempos de hoje, o homem tenha de se preparar para viver como um animal. Um homem que queira viver não pode viver numa casa com luzes acesas nas janelas. Tem de viver num buraco e esconder-se durante o dia. Tem de viver de maneira a não deixar vestígios da sua existência.
(...) aprendeu a amar a ociosidade que não consistia já em pequenas parcelas de liberdade roubadas ao trabalho e saboreadas furtivamente (...) mas que consistia numa entrega de si mesmo ao tempo, a um tempo que se ia escoando com a lentidão do óleo, de horizonte a horizonte, na face do mundo e que invadia todo o seu corpo (...). Não sentia gosto ou prazer quando era obrigado a trabalhar: era-lhe indiferente. Por vezes estava deitado durante um dia inteiro, com o olhar perdido, pregado no ondulado do telhado de zinco, e nos sinais de ferrugem, com o pensamento parado, sem a menor actividade imaginativa que desse formas variadas aos objectos contemplados. Para ele, ali deitado, a ferrugem era ferrugem e mais nada. Só o tempo se movia, transportando-o consigo no seu fluir constante. (...) De resto, vivia à margem do calendário e do relógio, num canto, isolado, meio acordado, meio adormecido. Como um parasita dormindo nos intestinos, pensou, ou com uma lagartixa debaixo de uma pedra.
(o médico)
Se não te adaptas morrerás. E não penses que te vais simplesmente desgastando, até seres todo alma, capaz de voar no éter. A morte que escolheste é cheia de dor, desgraça e tristeza e terás de sofrer muito, ainda, antes que venha a libertação.
(...)
Caímos todos dentro do caldeirão da História; só tu, seguindo a tua estrela idiota, prendendo a tua vida à tua própria orfandade, fugindo à guerra e à paz, vagueando ao ar livre por sítios que ninguém sonhou procurar (...) flutuando no tempo, acompanhando as estações da natureza, não te interessando mais do que a um grão de areia, em modificar o curso da História.
(...) A verdade é que vais desaparecer no anonimato de uma campa sem nome...”