Opinião
Porque somos (?) tão insolentes na certeza de que mais ninguém viveu a angústia da ambiguidade como nós a vivemos? Será porque sobrevivemos?
Foi isto que me ocorreu ao ler este romance de Musil. E se me foi possível pensar isto sem estabelecer analogias de época, cultura, meio, ou, até, de algo tão vital como o despertar, e a vivência, da sexualidade, mais fácil me seria reconhecer a imbecilidade de me arrogar casual entre distintos mais contíguos. Ou não?... Teimo ridicularizando-me e retiro, testemunhal, da memória as palavras de quem me deu este livro. Mas como poderia ele, tão afastado do tear que me teceu e, de resto, da continuidade incessante do cruza e descruza do fio que continua a tecer-me, ter pressentido, ou sabido? Talvez a solução deste aparente enigma, seja, sempre foi, e continuará a ser a evidência implacável que fica registada, como um estigma, na textura: a solidão. A solidão com tudo o que de prodigioso e intenso ela encerra, como a capacidade de sentir 'esse silêncio repentino, como uma linguagem inaudível' (como escreve Musil num contexto de abandono) e a necessidade de imaginar as mais emaranhadas combinações e diferentes possibilidades dessa mesma linguagem.
Musil confina-nos ao colégio militar onde o jovem Törless é interno, e deixa-nos ali, suspensos, encostados à janela aberta, estremecendo a cada reviravolta, interrogação e insatisfação do jovem, na busca do equilíbrio entre o emocional e o racional.
Excerto
Sentar-se de noite na janela aberta, sentindo-se abandonado, sentindo-se diferente dos adultos, com todos aqueles sorrisos e olhares trocistas que não o compreendiam, sem poder explicar a ninguém o que já sabia ser, e ansiar por alguém que o compreendesse… Isso é amor! Mas para senti-lo é preciso ser jovem e solitário. Com os pais devia ser diferente; algo tranquilo e composto: era apenas a mãe a cantar no jardim escuro, à noite, porque estava alegre…
Mas era exactamente isso que Törless não conseguia entender. Os planos pacientes que imperceptivelmente encadeiam os dias, formando meses e anos para o adulto, ainda lhe eram alheios. Assim também o embotamento que nem permite ao menos fazer indagações quando mais um dia se acaba. A sua vida estava centrada em cada dia. Cada noite significava-lhe um nada, uma sepultura, uma extinção. Ele ainda não tinha aprendido a morrer ao fim de cada dia sem se preocupar.