O QUE É O AMOR
Quando aprendi a ler, decidi vingar-me de todas as letras que tinha em casa e que durante anos me tinham olhado a sorrir por saberem que não as podia entender. Era tempo de eu me rir delas. Lia tudo o que me aparecia e depois colocava-o na gaveta, com a displicência de quem pode dizer “já te conheço de ginjeira”. O meu dicionário Lello Escolar é uma relíquia que guardo desde esses tempos. Foi um importante amigo que me ajudou a compreender as palavras que se faziam difíceis. Há medida que o tempo tem passado, tenho vindo a perder o encanto por esta amizade porque, ao contrário de antes, não encontro no meu amigo as respostas integrais para as duvidas que me assolam. Quando o questiono sobre o significado da amizade, da saudade, da felicidade, do amor e de outros sentimentos, oiço uma resposta que já não me sacia como nos tempos de outrora. Tenho a sensação que fica sempre algo por dizer. Sobre o amor, por exemplo, disse-me que é um sentimento que nos induz a obter ou a conservar a pessoa ou a coisa que nos agrada sobremaneira. É isso o amor? É só isso o amor? Que amigo tão ingrato! Não fosse o respeito que todos estes anos me exigem e eu dizia-te onde ias parar! Tento com este texto acrescentar um pouco a esta definição. Não tenho a presunção de a completar porque duvido que seja capaz. Aliás, este parágrafo que agora termina, à semelhança dum prefácio, foi escrito depois das linhas que se seguem, e assumo que no meu intimo sinto que algo, algo muito grande, ficou por dizer...
O amor é o alimento da vida e o antídoto para o veneno da morte. É mais difícil morrer depois duma vida preenchida de amor mas é impossível, ou no mínimo insuportável, viver sem ele. O amor é o alimento da vida. E o mais paradoxal é que até os desgraçados que vêem chegado o seu último dia antes de serem invadidos pelo amor, davam tudo para viver só mais um momento desde que esse momento fosse preenchido desse raro sentimento. É mais difícil morrer a quem em vida foi discípulo de Cupido, mas sofre-se mais se nunca se perdeu a cabeça por um amor. O amor é o antídoto da morte. Quem amou tem pena de morrer porque adorou amar, mas não sofre porque voltaria a amar da mesma maneira. Quem fugiu do amor ou não soube amar não tem pena de morrer, mas é destroçado pelo sofrimento de quem gostaria de ter feito as coisas de forma diferente, mas já não tem tempo para o mudar. Um amor arrependido é sempre um amor que não se viveu. O pior que pode acontecer a um amor vivido é passar a recordação. A melhor maneira de morrer é ter o coração cheio de amor ou preenchido de recordações.
O amor é totalitário e egoísta. Podem amar-se várias pessoas mas não se podem amar da mesma maneira. Há amores diferentes em qualidade, mas não há diferentes quantidades para a mesma qualidade. Cada qualidade de amor só permite uma pessoa. Amamos o nosso pai, a nossa mãe, os nossos irmãos e o nosso amor (este último merece o nome de nosso amor porque é o único que foi escolhido por nós e o único que nos podemos dar ao luxo de ilusoriamente substituir). São todos amores reais, intensos e compensadores. Mas são também todos diferentes e por isso compatíveis e não excludentes. No entanto, cada um deles, quando verdadeiro, exclui outro amor da mesma categoria, ou seja, da mesma qualidade. Não é possível amar com o mesmo sentimento um pai e um padrasto da mesma forma que é impossível amar o conjugue e um amante. O coração só permite uma pessoa em cada gavetinha. Quando nos iludimos com um novo amor da mesma qualidade, é disso mesmo que se trata – duma ilusão. A gavetinha estava vazia e assim continuará, porque o suposto novo amor que não implica o fim do suposto primeiro, também não é o amor de “gavetinha”. O amor de “gavetinha” é aquele que depois de preencher a gaveta, a fecha e atira as chaves para um local a quem nunca ninguém teve nem nunca terá acesso. É triste, ou até talvez seja bom, mas só se ama realmente uma vez. Podem viver-se amores mas só se vive um amor. Pode morrer-se de amor mas nunca se morre de amores. O amor é por natureza único e intransmissível. Muitas vezes não se vive toda a vida, nem sequer a maior parte da vida, com quem nos preencheu a gaveta. Por vezes vivemos mais tempo e até mais coisas com alguém que já não pode entrar na gaveta preenchida. Mas tudo é melhor do que viver toda a vida com a gaveta vazia, mesmo que durante todo esse tempo se tenha estado acompanhado.
O amor é uma simbiose de emoção e admiração. No início gostamos de alguém que admiramos e mais tarde admiramos alguém de que gostamos. Um amor verdadeiro inicia-se com admiração e é no domínio da admiração que dá os primeiros passos. À medida que se vai desenvolvendo, a admiração vai cedendo importância à emoção que se vai tornando cada vez mais preponderante e acaba mesmo por assumir o fulcro do amor. No entanto, a admiração tem de permanecer presente, porque órfã de admiração, a emoção não vive muito tempo. O amor implica admiração. Dizer que se ama e que se admira alguém é proferir um pleonasmo. Podemos admirar sem amar, mas é impossível amar sem admirar. Um amor sem admiração é um carinho ou um devaneio de ternura, mas não é um amor. Amar implica gostar com o coração e a cabeça, que é como quem diz, com emoção e razão. Gostar só com emoção é não gostar, ou melhor, é querer gostar. O amor é gostar sem querer e não conseguir deixar de gostar mesmo que se queira. As razões que a razão desconhece só surgem quando se gosta também com a razão. Porque a razão só se deixa fintar quando esta enamorada.
O amor é uma tragédia. A mais bonita e empolgante tragédia que se pode viver. A tragédia mais complicada e paradoxal que a vida nos permite experimentar.
O amor é o que não sei dizer e é tudo o que digo. É indizível mesmo quando se diz. E é muitas vezes dito sem se dizer.
O amor é tudo o que vale a pena, tudo o que nos basta, tudo o que nos resta.
Quando aprendi a ler, decidi vingar-me de todas as letras que tinha em casa e que durante anos me tinham olhado a sorrir por saberem que não as podia entender. Era tempo de eu me rir delas. Lia tudo o que me aparecia e depois colocava-o na gaveta, com a displicência de quem pode dizer “já te conheço de ginjeira”. O meu dicionário Lello Escolar é uma relíquia que guardo desde esses tempos. Foi um importante amigo que me ajudou a compreender as palavras que se faziam difíceis. Há medida que o tempo tem passado, tenho vindo a perder o encanto por esta amizade porque, ao contrário de antes, não encontro no meu amigo as respostas integrais para as duvidas que me assolam. Quando o questiono sobre o significado da amizade, da saudade, da felicidade, do amor e de outros sentimentos, oiço uma resposta que já não me sacia como nos tempos de outrora. Tenho a sensação que fica sempre algo por dizer. Sobre o amor, por exemplo, disse-me que é um sentimento que nos induz a obter ou a conservar a pessoa ou a coisa que nos agrada sobremaneira. É isso o amor? É só isso o amor? Que amigo tão ingrato! Não fosse o respeito que todos estes anos me exigem e eu dizia-te onde ias parar! Tento com este texto acrescentar um pouco a esta definição. Não tenho a presunção de a completar porque duvido que seja capaz. Aliás, este parágrafo que agora termina, à semelhança dum prefácio, foi escrito depois das linhas que se seguem, e assumo que no meu intimo sinto que algo, algo muito grande, ficou por dizer...
O amor é o alimento da vida e o antídoto para o veneno da morte. É mais difícil morrer depois duma vida preenchida de amor mas é impossível, ou no mínimo insuportável, viver sem ele. O amor é o alimento da vida. E o mais paradoxal é que até os desgraçados que vêem chegado o seu último dia antes de serem invadidos pelo amor, davam tudo para viver só mais um momento desde que esse momento fosse preenchido desse raro sentimento. É mais difícil morrer a quem em vida foi discípulo de Cupido, mas sofre-se mais se nunca se perdeu a cabeça por um amor. O amor é o antídoto da morte. Quem amou tem pena de morrer porque adorou amar, mas não sofre porque voltaria a amar da mesma maneira. Quem fugiu do amor ou não soube amar não tem pena de morrer, mas é destroçado pelo sofrimento de quem gostaria de ter feito as coisas de forma diferente, mas já não tem tempo para o mudar. Um amor arrependido é sempre um amor que não se viveu. O pior que pode acontecer a um amor vivido é passar a recordação. A melhor maneira de morrer é ter o coração cheio de amor ou preenchido de recordações.
O amor é totalitário e egoísta. Podem amar-se várias pessoas mas não se podem amar da mesma maneira. Há amores diferentes em qualidade, mas não há diferentes quantidades para a mesma qualidade. Cada qualidade de amor só permite uma pessoa. Amamos o nosso pai, a nossa mãe, os nossos irmãos e o nosso amor (este último merece o nome de nosso amor porque é o único que foi escolhido por nós e o único que nos podemos dar ao luxo de ilusoriamente substituir). São todos amores reais, intensos e compensadores. Mas são também todos diferentes e por isso compatíveis e não excludentes. No entanto, cada um deles, quando verdadeiro, exclui outro amor da mesma categoria, ou seja, da mesma qualidade. Não é possível amar com o mesmo sentimento um pai e um padrasto da mesma forma que é impossível amar o conjugue e um amante. O coração só permite uma pessoa em cada gavetinha. Quando nos iludimos com um novo amor da mesma qualidade, é disso mesmo que se trata – duma ilusão. A gavetinha estava vazia e assim continuará, porque o suposto novo amor que não implica o fim do suposto primeiro, também não é o amor de “gavetinha”. O amor de “gavetinha” é aquele que depois de preencher a gaveta, a fecha e atira as chaves para um local a quem nunca ninguém teve nem nunca terá acesso. É triste, ou até talvez seja bom, mas só se ama realmente uma vez. Podem viver-se amores mas só se vive um amor. Pode morrer-se de amor mas nunca se morre de amores. O amor é por natureza único e intransmissível. Muitas vezes não se vive toda a vida, nem sequer a maior parte da vida, com quem nos preencheu a gaveta. Por vezes vivemos mais tempo e até mais coisas com alguém que já não pode entrar na gaveta preenchida. Mas tudo é melhor do que viver toda a vida com a gaveta vazia, mesmo que durante todo esse tempo se tenha estado acompanhado.
O amor é uma simbiose de emoção e admiração. No início gostamos de alguém que admiramos e mais tarde admiramos alguém de que gostamos. Um amor verdadeiro inicia-se com admiração e é no domínio da admiração que dá os primeiros passos. À medida que se vai desenvolvendo, a admiração vai cedendo importância à emoção que se vai tornando cada vez mais preponderante e acaba mesmo por assumir o fulcro do amor. No entanto, a admiração tem de permanecer presente, porque órfã de admiração, a emoção não vive muito tempo. O amor implica admiração. Dizer que se ama e que se admira alguém é proferir um pleonasmo. Podemos admirar sem amar, mas é impossível amar sem admirar. Um amor sem admiração é um carinho ou um devaneio de ternura, mas não é um amor. Amar implica gostar com o coração e a cabeça, que é como quem diz, com emoção e razão. Gostar só com emoção é não gostar, ou melhor, é querer gostar. O amor é gostar sem querer e não conseguir deixar de gostar mesmo que se queira. As razões que a razão desconhece só surgem quando se gosta também com a razão. Porque a razão só se deixa fintar quando esta enamorada.
O amor é uma tragédia. A mais bonita e empolgante tragédia que se pode viver. A tragédia mais complicada e paradoxal que a vida nos permite experimentar.
O amor é o que não sei dizer e é tudo o que digo. É indizível mesmo quando se diz. E é muitas vezes dito sem se dizer.
O amor é tudo o que vale a pena, tudo o que nos basta, tudo o que nos resta.
Paulo Freire
Publicado no Jornal "Diário de Coimbra" em 2001
Paulo Freire, Coimbra