QUERO MORRER
No concelho de Cantanhede, entre a Comunidade de S. José e S. Caetano, escondido e protegido no meio dos pinhais, corre um pequeno lago a que os admiradores chamam, com respeito e afabilidade, a Ilha. Não é uma ilha no verdadeiro sentido literário da palavra, mas tem todo o encanto, toda a beleza e toda a serenidade que idealizamos quando pensamos numa ilha. É de tal maneira assim, que desde que lá fui pela primeira vez aos 6 ou 7 anos, me recuso a chamar-lhe outra coisa que não seja a Ilha.
A Ilha é o meu primeiro destino de férias e hoje, tal como da primeira vez, o meu primeiro gesto foi mergulhar as mãos na água. As margens não mudaram e a água parece a mesma de há 15 anos atrás. O tempo não parece ter passado por aqui. Mas estas mãos já não têm a mesma leveza e o rosto que a corrente teima em reflectir não tem a inocência de outrora. O tempo tem passado por mim. Se cá puder voltar daqui a 15 anos, o rio e o leito estarão por ventura imutados, mas as mãos mergulhadas na água serão menos sensíveis do que hoje e o rosto espelhado não será, com certeza, tão contemplativo. O tempo não passará por aqui, mas continuará a passar por mim...
Toda a nossa existência esta organizada por dicotomias: estamos felizes ou infelizes, estamos contentes ou tristes, estamos doentes ou com saúde, amamos ou odiamos, estamos apaixonados ou de mal com o mundo, estamos vivos ou mortos... A vida é insossa ou salgada, nunca tem o sabor que gostaríamos que ela tivesse. Experimentamos e aceitamos estas dicotomias em todos os momentos das nossas vidas. Às vezes até nos fazem jeito. Mas há uma de que fugimos todos os dias: a morte como parte da dicotomia com a vida. No caminho de incertezas que defrontamos diariamente, a morte é talvez a única coisa que sabemos certa, mas ainda assim é ela que nos apanha mais desprevenidos. Nunca estamos preparados para morrer porque em vida nos preparamos sempre para viver o dia seguinte. Nunca estamos preparados para perder alguém de quem gostamos muito porque nunca lhe dissemos o que realmente sentíamos. E o tempo, como diz o povo, não perdoa.
Se um dia o mestre da lâmpada descesse do mito à realidade não tenho a menor dúvida de que o desejo mais escolhido seria o da imortalidade. Mas que faríamos com uma vida sem fim? Apenas teríamos sempre mais um dia para fazer o que devíamos fazer já. Uma vida eterna faria desaparecer um dos sentimentos que mais nos distingue: a saudade. Alguém disse que a “saudade não significa que estamos longe, significa que um dia estivemos juntos”. A singularidade desse dia só é possível numa existência limitada. Jamais trocaria a saudade pela imortalidade.
O tempo não é o mau da fita. O tempo dá sentido às coisas e, por consequência, à vida. O tempo é simultaneamente o “pai” rígido que nos lembra as nossas obrigações e a “mãe” compreensiva que nos dá espaço para o encontro com os outros. A morte representa o fim do nosso tempo e a peça chave da nossa última dicotomia. A morte é o último privilégio de quem teve o privilégio de viver. Não adianta pedir perdão ao tempo ou sonhar com o génio da lâmpada. Quero viver até ao último dia da minha vida mas quero morrer no dia da minha morte.
Se puder viver até aos 80 anos, não permitirei que ninguém me vete o prazer de voltar à Ilha. Quero voltar a mergulhar as mãos, ou pelo menos a bengala, no seio da corrente e quero ver o reflexo do rosto enrugado, para depois fechar os olhos e recordar, com saudade mas sem tristeza, a imagem do miúdo de 6 anos que com a Ilha aprendeu a contemplar a natureza e a perceber o significado do tempo.
Paulo Freire
Publicado no Jornal "Auri Negra" em 2000
Paulo Freire, Coimbra