O QUE A VIDA É
Em 1994, tinha eu 16 anos, aquela idade em que as dúvidas da existência se cruzam com a vertigem da vida real, quando vi um filme marcante para a época e insofismável no meu percurso. Forrest Gump era o título da obra e também o nome da personagem principal interpretada por Tom Hanks, um indivíduo peculiar, louco dirão alguns, cujo percurso e estranha perseverança sublinhavam a essência e a simplicidade da vida que tantas vezes nos encarregamos de complicar. A vida é, estou a citar, “uma caixa de chocolates”, uma espécie de sortido à mercê das nossas escolhas, alegorizando o papel que as opções e a aleatoriedade têm nas nossas vidas.
Essa perspectiva de vida enraizou-se no meu intimo à medida que se acumularam no meu percurso os múltiplos exemplos comprobatórios da sua veracidade, sem espaço sequer para a célebre excepção que deveria confirmar a famigerada regra. E foi assim até que o meu filho, com 4 anos, me fez perceber que a vida é outra coisa: a vida é o carro do Noddy do André! E estou em condições de o comprovar…
O dito automóvel, presente que o André recebeu quando tinha um ano de idade, andava quando o Noddy era posicionado no assento, mantendo a marcha até à finitude das baterias ou à ordem de ejecção do boneco determinada pelos dedos em pinça do meu pequeno comandante, movimento repetido exaustivamente com uma alegria que o tempo vai ter dificuldade de me fazer esquecer. Ao contrário dos outros brinquedos automatizados que repousam no sótão depois de aviarem meia dúzia de pilhas, o carro do Noddy mantém um lugar de garagem privilegiado na estante que fica ao lado da cama. E porquê? Porque o seu sistema de funcionamento se avariou e o André passa os dias a imaginar alternativas para o fazer funcionar. Debaixo do assento já colocou, entre outros, pedaços de papel, borracha e plasticina, todos com sucesso parcial e transitório. De manhã, quando acorda, é frequente vê-lo a olhar fixamente o automóvel e sou capaz de jurar que procura encontrar um novo esquema mais perfeito…
As relações que funcionam, que duram, que valem a pena, acontecem entre pessoas que não encaixam na perfeição, que têm de mudar coisas, procurar equilíbrios, exigir e ceder. Quando se compatibilizam funcionam algum tempo até que voltam a emperrar e têm de reflectir novamente, limar arestas, granjear trilhos distintos, remodelar o que haviam construído. Amar, sobretudo continuar a amar, dá muito trabalho. As relações perfeitas, construídas sem negociações, sem necessidade de ajustes, funcionam mais cedo e até porventura melhor, mas não tarda esgotam-se as pilhas e a imaginação e resta-lhes um “sótão” para repousar. É por isso que não acredito no amor à primeira vista e fugi das relações em que éramos feitos um para o outro.
Numa dessas manhãs, sem desviar o olhar hipnotizado, o André perguntou-me: “Podes pedir àquele mágico das roupas pretas que aparece na televisão para criar uma magia que faça o meu carro andar quando bato palmas?”. Caro Luis de Matos há alguma coisa que se possa fazer?
Paulo Freire
Publicado no jornal "Diário de Coimbra" (14/09/2011)
Paulo Freire, Coimbra