NIRVANA
Finalmente o dia acaba. Tiro a bata, arrumo a mala apressadamente, ajeito a roupa pelo corredor e abalo para o carro. Desde há 3 meses que esta é a melhor parte do dia.
As nossas vidas são entrecortadas por inúmeros momentos importantes. Os carinhos e devaneios de criança. O primeiro beijo, o primeiro amor, a primeira relação sexual. O primeiro desgosto e o fim do mundo ali tão perto. O primeiro trabalho e o primeiro ordenado. A dor de perder alguém que amamos, quando tudo deixa de fazer sentido de repente e o tempo, em vez de ajudar, acentua a saudade do que ainda faltava viver. O nosso passado é feito de todos estes marcos, de todas estas dúvidas e encruzilhadas, de todos estes episódios que a memória nos relembra sob a forma de recordações. Mas, mais do que de tudo o que possamos viver, do que todo o sofrimento que consigamos suportar, do que a maior alegria, do que o mais arrebatador dos amores ou do que a tristeza que nos dilacera irreversivelmente, só um acontecimento na vida, e apenas esse, é capaz de dividi-la em duas partes irremediavelmente diferentes: o nascimento de um filho. A partir daí já nada mais será igual. Podemos esquecer tudo o que fizemos, tudo o que dissemos, as definições que conhecemos, às vezes até aquilo em que acreditamos. Esse dia mágico muda tudo e para sempre.
Tudo, mesmo tudo, passou a tê-lo como fulcro. Não há nada, mesmo nada, que lhe possa ser indiferente. A nossa própria saúde passa a ser mais importante, não porque tenhamos passado a gostar mais de nós, mas porque somos invadidos por um súbito altruísmo que cria o instinto da necessidade de estar vivo para poder dar-lhe tudo o que ele precisa. As prioridades adquirem o carácter singular duma só prioridade: ele. O que antes nos parecia indispensável ganha o estatuto de supérfluo.
E percebi que o passado foi apenas o que tive de viver até te encontrar. Que tudo começa realmente aqui. Que a vida afinal tem sentido e que o futuro só existe ao teu lado. Que o enamoramento não é o cume do amor e que a paixão é um consolo menor. Que os dias não são todos iguais e que o quotidiano é um coração entediado. Que o tempo foi inventado e as horas só servem para poder contar quanto falta para estar contigo. Que a estrada só existe para me levar até ti e que o meu coração só bate para te ver. Que tu és, simplesmente, tudo…tudo o que preciso para viver o resto da minha vida. Que não voltaria a acordar sem o teu olhar. Que és o fado da minha vida e que me fizeste entender os anseios dos teus avós.
O ranger da fechadura irrompe pelo silêncio integral da casa. Na sala, no sofá, o André e a mãe dormem serenamente, ele sobre o peito dela e ela a embalá-lo com as expansões torácicas. Resisto à tentação da máquina fotográfica ali ao lado. Sento-me no sofá oposto e decoro cada pormenor para quando me fizerem falta. São tão simples os momentos mais felizes da nossa vida…
Paulo Freire
Publicado no jornal "Diário de Coimbra" em 11/IX/2007
Paulo Freire, Coimbra