A PERVERSA BUSCA DA FELICIDADE
A felicidade, classicamente o mais democrático e transversal dos sentimentos, é cada vez mais uma ditadura da actualidade que vivemos. A felicidade, mais até que o amor, é uma imposição tácita dos nossos dias. Arroga-se com facilidade, coragem e determinação a ausência do enamoramento, da paixão e do amor, mas ninguém é capaz de assumir, com tranquilidade e esperança, um estado que não seja de felicidade. Não estar feliz passou a ser um feito ilícito, uma fraqueza, até mesmo um acto de cobardia se não for acompanhado duma qualquer atitude reactiva que destrua tudo o que se construiu. A felicidade tornou-se um dever, uma obrigação, algo a que somos permanentemente coagidos. A felicidade deixou de ser algo que acontece para ser algo que se procura, converteu-se em algo que se pode encontrar em vez de algo que se pode dar.
A felicidade não se pode preparar como quem segue uma receita ou erige um edifício previamente planeado. Não é programável, conjecturável nem passível de indução. Não vai lá com uma ajudinha, com umas velas a compor um jantar nem com umas ilhas gregas a disfarçar os problemas. A felicidade é simples e imprevisível. Mora na conivência dum olhar, na ternura dum beijo, no conforto do silêncio, na obscuridade dum gesto, nos despretensiosos e imponderáveis momentos de vida de que o acaso se incumbe com a cumplicidade do amor.
A felicidade não é algo que se seja. O ser implica constância, continuidade, quotidiano, rotina, crescimento e maturação, características que a felicidade não pode congregar. A felicidade é algo que se pode estar. Que se pode estar hoje, agora, neste momento, sem condições, sem promessas, com ilusões mas sem cobranças. É um desejo que adicionado de tempo se transforma na esperança de vir a estar feliz. Querer ser feliz em vez de querer estar feliz, é hiperbolizar o protagonismo do desejo desprovendo-o da indispensável ponderação que o tempo lhe confere, asfixiando a esperança no futuro, criando a urgência dum presente que não existe, instalando a angústia onde antes reinava a expectativa. Não ser feliz é ser infeliz. Não estar feliz não implica necessariamente que se esteja infeliz. Ser alguma coisa é dicotómico: ou se é ou não se é, ponto final. O estar é diferente. Pode estar-se uma coisa ou outra, ou simplesmente não estar coisa nenhuma, uma espécie de intervalo até que alguma coisa aconteça de novo. A maioria dos problemas das nossas vidas resulta disto mesmo: de querermos ser o que afinal só podemos estar. Exasperados com aquilo que não somos nem sequer nos resta lucidez, tempo e longanimidade para estar o que queríamos ser. No final não somos nem estamos nada do que queríamos e acabamos por ser exactamente aquilo que não desejávamos: infelizes.
Há caminhos que não têm retorno e há retornos que não são caminhos. Os sensatos procuram a felicidade nos caminhos, os infelizes perdem-se nos retornos. A felicidade é irrepetível. Poderemos estar felizes várias vezes, até com a mesma pessoa, mas nunca da mesma maneira. A felicidade renova-se mas não se repete. É por isso que nos move a busca da felicidade. É por isso que é bom estar feliz. É por isso que custa viver depois da felicidade. A felicidade regenera-se mas não se substitui. Nenhum momento feliz relativiza a importância e a memória duma felicidade passada. Cada felicidade vive de si própria e vale por si mesma e quando decide morrer, morre, mesmo que não haja outra felicidade para ser vivida. E quando morre deixa-nos a memória, que é como quem diz, a sua alma, lembrança indelével para quem se iludiu e acreditou que a viveria para sempre. A felicidade é um momento. Um momento onde pode caber uma vida e valê-la também…
Paulo Freire
Publicado na “Revista C” (29/IX/2011)
Paulo Freire, Coimbra