Lisboa: Docas e Telhados
Lisboa mostra-se capaz de sobreviver, século após século, às mais terríveis calamidades; mas bastam uns dias de chuva para a deixarem irreconhecível, uns contratempos de trânsito para a tornarem quezilenta ou mal-humorada. Barafusta, empolga-se, cruza os braços, inquieta-se, aquieta-se, e tão depressa adormece de bruços sobre o Tejo como logo lhe volta as costas, enveredando por avenidas que nunca chegarão ao calcanhar dos seus becos, espraiando-se por novos cerros que nunca terão a graça das suas primeiras colinas.
Nos bairros que se estendem ao longo do rio é que podem surpreender-se, ainda hoje, as sementes do génio que a fez dispersar-se por todo o Mundo, os berços de saudades onde se embalaram as mais antigas guitarras, as cicatrizes de todos os seus terramotos, os fogareiros de barro em que se reduziram a cinza muitos sonhos de grandeza; mas, também, nos estendais da sua roupa simples a secar ao sol, o enxoval que sempre tem pronto para novas núpcias com o Mar.
As suas docas e os seus telhados são as imagens que melhor representam a dupla vocação com que a História a assinalou: partir, ficar; aventurar-se, recolher-se; buscar o Infinito que não se alcança ou sonhar com ele entre quatro paredes. Não faltam porém os cataventos, símbolos de inconstância, em muitos desses telhados; nem as âncoras, emblemas de fidelidade, em todos aqueles cais. Os lisboetas que partem nunca partem por completo; os que ficam nunca ficam por inteiro.
Lisboa é assim uma cidade de semipresenças, de semiausências, carregada de memórias e meio amnésica, tanto mais desperta quanto mais sonâmbula, perdulária de bens que já não possui ou jamais possuiu, e em contrapartida muito avara do que ninguém lhe pode roubar: os privilégios da sua atmosfera, os sortilégios da sua luz.
(1984)
David Mourão-Ferreira, in 'Terraço Aberto'