A Publicidade, Grande Pregadora Quaresmal
Na época da secularização, a publicidade substitui por vezes os taciturnos pregadores da chamada idade das trevas, fustigadores da carne entusiasmados por recordar que por baixo de um par de gloriosos seios está um esqueleto destinado a desfazer-se em pó. A publicidade presta-se igualmente, e é justo que assim seja, a dissipar com estas advertências também outros prazeres. O espectador que está a ver na televisão um filme policial, um drama sentimental ou uma reportagem é interrompido, muito provavelmente porque está prestes a descobrir o assassino, por outras histórias que irrompem no ecrã. Breves sequências povoadas por mulheres magníficas que suam, transpiram, cheiram mal, perdem líquidos através das partes mais delicadas, têm cabelo oleoso e seboso, mau hálito nas bocas convidativas à vista, mas evidentemente repelentes ao olfato. Dramas que, por sorte, têm um rápido e feliz, desfecho, pois no ecrã surgem de imediato redentores efémeros mas repetíveis, loções poções óleos unguentos pensos sprays cremes; aqueles corpos reflorescem, voltam a seduzir e a ser convidativos e, logo depois, o espectador volta a seguir o seu filme policial.
Dramas de final feliz, mas por pouco tempo. Ao passo que a fé, inaudível, proclama «gloriosa» a carne esplendente e lhe promete uma ressurreição definitiva, o espectador diante da televisão é imediatamente interrompido, uma vez mais, e aqueles corpos — não só femininos mas também, ainda que em menor escala, masculinos, como impõe a igualdade de género — estão novamente suados, húmidos, vergonhosamente molhados, malcheirosos. É preciso reconhecer que a publicidade televisiva, se por um lado é com certeza uma chatice que dá cabo do honesto descanso de quem só quer ver um programa, por outro é também uma espécie de grande pregadora quaresmal, a herdeira da universalidade dos Mistérios medievais em que toda a beleza, riqueza e poder acabam por se reduzir a pó. Se não fossem as empresas que produzem desodorizantes, cremes depilatórios, pensos higiénicos e champô, quem se lembraria ainda de que está destinado ao pó?
(22 de agosto de 2015)
Claudio Magris, in 'Instantâneos'