Calcificar a Vida
É verdade que, depois de termos deixado calcificar a vida (assim como acontece com as torneiras que já não abrem nem fecham, só pingam durante a noite — não, isto não é uma irónica metáfora sobre o sexo conjugal), precisamos quase sempre de um estímulo para ressuscitar. Então, ou o inventamos ou, sendo sortudos, ele vem ter connosco como uma aparição — talvez trajando de amarelo — que caminha devagar por entre arbustos de um jardim: e a nossa boca e os nossos olhos abrem-se de espanto como se presenciássemos o começo do mundo (que de certeza não terá sido mais milagroso).
Talvez essa oportunidade e a possibilidade desse deslumbramento, dessa fascinação, sejam as únicas coisas que ainda devemos agradecer à vida. O resto é apenas nosso e não serve para muito — produtos domésticos que o tempo cuidará de apagar e de tratar.
José Riço Direitinho, in 'O Escuro que te Ilumina'