As Três Realidades Sociais
Há três realidades sociais - o indivÃduo, a Nação, a Humanidade. Tudo mais é fictÃcio. São ficções a FamÃlia, a Religião, a Classe. É ficção o Estado. É ficção a Civilização.
O indivÃduo, a Nação, a Humanidade são realidades porque são perfeitamente definidos. Têm contorno e forma. O indivÃduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental — é um corpo vivo e uma alma viva.
A Nação é também uma realidade, pois a definem o território, ou o idioma, ou a continuidade histórica — um desses elementos, ou todos. O contorno da nação é contudo mais esbatido, mais contingente, quer geograficamente, porque nem sempre as fronteiras são as que deviam ser; quer linguisticamente, porque largas distâncias no espaço separam paÃses de igual idioma e que naturalmente deveriam formar uma só nação; quer historicamente, porque, por uma parte, critérios diferentes do passado nacional quebram, ou tendem para o quebrar, o vasÃculo nacional, e, por outra, a continuidade histórica opera diferentemente sobre camadas da população, diferentes por Ãndole, costumes ou cultura.
A Humanidade é outra realidade social, tão forte como o indivÃduo, mais forte ainda que a Nação, porque mais definida do que ela. O indivÃduo é, no fundo, um conceito biológico; a Humanidade é, no fundo, um conceito zoológico — nem mais nem menos do que a espécie animal formada de todos os indivÃduos de forma humana. Uma e outra são realidades como raiz. A Nação, sendo uma realidade social, não o é material: é mais um tronco que uma raiz. O IndivÃduo e a Humanidade são lugares, a Nação o caminho entre eles. É através da fraternidade patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado, que gradualmente nos sublimamos, ou sublimaremos, até à fraternidade com todos os homens.
Segue de aqui que, quanto mais intensamente formos patriotas — desde que saibamos ser patriotas —, mais intensamente nos estaremos preparando, e conosco aos que estão conosco, para um conseguimento humano futuro, que, nem que Deus o faça impossÃvel, deveremos deixar de ter por desejável. A Nação é a escola presente para a super-Nação futura. Cumpre, porém, não esquecer que estamos ainda, e durante séculos estaremos, na escola e só na escola.
Ser intensamente patriota é três coisas. É, primeiro, valorizar em nós o indivÃduo que somos, e fazer o possÃvel por que se valorizem os nossos compatriotas, para que assim a Nação, que é a suma viva dos indivÃduos que a compõem, e não o amontoado de pedras e areia que compõem o seu território, ou a coleção de palavras separadas ou ligadas de que se forma o seu léxico ou a sua gramática — possa orgulhar-se de nós, que, porque ela nos criou, somos seus filhos, e seus pais, porque a vamos criando. (...)
Fernando Pessoa, in 'O Eu Profundo'