Diário
Novembro 1915
15 — A manhã começou com uma pequena desilusão: resposta negativa de Guimarães e Cª (mas boa notÃcia por causa do estado incompleto do panfleto). O dia passou de modo bastante agradável, com algumas pequenas (embora subjectivas) «suspeitas», de pouca importância. Entre as 3 e as 4 da tarde recebi, inesperadamente, 1 dólar e meio da parte de Senchi, por lhe ter passado à máquina as suas traduções. O dia acabou bem no Hotel com a tia Lisbella; (...) fiz-me amável para com ela e a sobrinha, obviamente. Muito cedo, no dia 16 (entre mais ou menos as 2 e as 5) tive uma grande excitação mental, ideias filosóficas. Fisicamente indisposto, flatulência. Mistura de megalomania e de ideias religiosas (de modo algum atacando a lucidez). Dormi das 5 e meia até à s 11 do dia 16. Aquela parte da noite foi notável em termos de acção mental. (Ao voltar para casa por volta das 11 e meia da noite, tinha tido alguns pequenos e curiosos terrores de «espÃrito».)
16 — Levantei-me tarde, perto das onze. Como durante a noite fiquei acordado até mais ou menos à s 4, andei num estado um pouco confuso em consequência disto. No escritório aconteceu uma coisa boa: últimas provas do D. da R. tinham chegado: tenho portanto solução para a questão relativa à tia Carolina. Estas provas, inesperadas, foram cansativas. — Não consegui receber o dinheiro esta noite, tendo chegado, contudo, forçosamente tarde. Li Caeiro e R. Reis ao Raul Leal: pareceu-me que gostou muito deles e os compreendeu: bons momentos, portanto. Passeei com o Brito, conversámos abandonadamente acerca de «Orpheu». Jantei à s 9 e meia. Fui para casa logo a seguir. Fumei muito menos, por força de vontade e por natural efeito disso.. Um dia agradável, no seu conjunto. (De manhã além das boas notÃcias por causa das provas, também notÃcias agradáveis na carta de Sol, quando se refere a Hermano Neves).
22 — O mesmo género de dia, bastante agradável, especialmente à noite, quando estive muito lúcido e desembaraçado na conversa. À noite, em semiconsciência, Janus.
23 — O mesmo género de dia. Trabalhei pouco na tradução. Os mesmos problemas financeiros.
24 — Começou da mesma maneira de ontem, mas melhorou à tarde (entre as 3 e as 5) quando consegui um dólar do Franco. A noite foi muito agradável; tinha a mente lúcida. (...) ao ir para casa, caà numa depressão considerável, tive um desejo de exprimi-la por escrito mas não fui capaz de o fazer.
25 — Despertei com uma dor de garganta, mas mais tarde passou. Um dia perdido mas não de modo desagradável, apenas desagradável por sabê-lo perdido.
26 — Um muito curioso dia mÃstico. Encontrei o César Porto. Fiz a liquidação (realmente reliquidação, embora melhor agora), casualmente, na Livraria Monteiro (...). Perdi todo o tempo com a tradução. Tive por 3 vezes durante o dia e a noite crises de uma espécie curiosa de vertigens — um género abstractamente fÃsico; mas estive lúcido durante todo o dia. Fumei muito. (...) O dia foi inteiramente agradável, excepto ter sido um dia perdido. À noite tive uma conversa descontraÃda e muito agradável com Leonardo Coimbra.
29 — Um dia mais ou menos interessante e feliz. Resolvi de repente a questão do dinheiro do Mário pois pedi emprestados 10 dólares (+ para livros) até ao dia 7 de Dezembro. A tradução chegou e foi fácil. Um estado de certa excitação, mas não prejudicial, e de facto ligeiro — encontrei o Leal e fiquei contente. À noite no hotel com a tia Lisbella, muito agradável; fiz olhinhos a uma rapariga bastante interessante que pareceu gostar de mim. Senti-me à vontade com elas (ela e talvez uma irmã), embora falasse pouco. O Imperador, alas!
30 — Um dia praticamente perdido, mas agradável, as duas coisas porque, apesar de um pouco de chuva, o céu estava azul e belo, e porque a vida correu bem. À noite fiquei satisfeito por ouvir duas amáveis referências (Côrtes-Rodrigues e Perdigão) ao facto de eu estar bem vestido (Oh! eu?) e passei uma hora e meia muito agradável no hotel fazendo ainda mais olhinhos (e trocando olhares) com a rapariga (de 17 anos, excelente) e pareceu-me agradar-lhe, a ela, à irmã e até à sua surda mãe. Falei com ela com bastante à -vontade, olhando-a até directamente nos olhos. Alas!...
Dezembro
6 — Um dia desagradável porque choveu muito; o meu fato ficou enrugado, tive que esperar 1/2 hora na rua, e também porque a tradução progrediu muito pouco. Mas gostei de uma breve visita ao hotel porque só pude ficar pouco tempo (já que tinha que voltar ao escritório), e portanto não me aborreci, e a doçura da rapariguinha não tinha desaparecido de todo, embora eu não tivesse aparecido durante 3 dias. A tia Lisbella tinha pensado que a minha ausência se devia a eu ter ficado ofendido por «pôr-me na rua», na brincadeira, há várias noites... Achei isto divertido e agradável por ela ter pensado isso possÃvel e ter-se preocupado. — Uma grande depressão à noite, quase sem dinheiro e muito deprimido. De tal modo deprimido que comecei a escrever uma carta ao Sá-Carneiro e a interrompi, devido à falta de vontade de escrever. (Também esperei durante muito tempo pelo Guisado, mas não veio).
7 — Melhor, melhor. Um dia melhor, primeiro. A seguir, trabalhei bastante bem, mais tarde fiz tradução e fui ao escritório (15 cartas). Nada de depressão; antes o princÃpio de um raciocÃnio lúcido, ocultistamente antiteosófico.. O Vitoriano Braga falou comigo, de manhã, do Coelho de Carvalho que quer que eu traduza o Fausto; mas, que pena!, o ganho é hipotético e longÃnquo!
Fernando Pessoa, in 'Diário - Manuscrito inédito'