Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar a mim mesmo, de me apiedar, com lágrimas, sobre o meu próprio eu. Acabo de ter uma espécie de cena com a tia Rita acerca de F. Coelho. No fim dela senti de novo um desses sintomas que cada vez se tornam mais claros e sempre mais horrÃveis em mim: uma vertigem moral. Na vertigem fÃsica há um rodopiar do mundo externo em relação a nós: na vertigem moral, um rodopiar do mundo interior. Parece-me perder, por momentos, o sentido da verdadeira relação das coisas, perder a compreensão, cair num abismo de suspensão mental. É uma pavorosa sensação esta de uma pessoa se sentir abalada por um medo desordenado.
Estes sentimentos vão-se tornando comuns, parecem abrir-me o caminho para uma nova vida mental, que acabará na loucura. Na minha famÃlia não há compreensão do meu estado mental — não, nenhuma. Riem-se de mim, escarnecem-me, não me acreditam. Dizem que o que eu pretendo é mostrar-me uma pessoa extraordinária. Nada fazem para analisar o desejo que leva uma pessoa a querer ser extraordinária. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário não há senão a diferença da consciência que é acrescentada ao facto de se querer ser extraordinário. É o mesmo caso que se dava comigo brincando com soldados de chumbo aos sete e aos catorze anos, no primeiro caso os soldados eram para mim cousas e no segundo cousas e cousas-brinquedos ao mesmo tempo: no entanto o impulso para brincar com eles subsistia e esse é que era o real e fundamental estado psÃquico.
Não tenho ninguém em quem confiar. A minha famÃlia não entende nada. Não posso incomodar os amigos com estas cousas. Não tenho realmente verdadeiros amigos Ãntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome, no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são Ãntimos no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tÃmido, e tenho repugnância em dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo Ãntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos quotidianos, embora esteja certo de que nunca chegarei a ter um verdadeiro amigo Ãntimo. Nenhum temperamento se adapta ao meu. Não há um único carácter neste mundo que porventura dê mostras de se aproximar daquilo que eu suponho que deve ser um amigo Ãntimo. Acabemos com isto.
Amantes ou namoradas é coisa que não tenho; e é outro dos meus ideais, embora só encontre, por mais que procure, no Ãntimo desse ideal, vacuidade, e nada mais. ImpossÃvel, como eu o sonho! Ai de mim! Pobre Alastor! Oh Shelley, como eu te compreendo! Poderei eu confiar em minha mãe? Como eu desejaria tê-la junto de mim! Também não posso confiar nela. Mas a sua presença teria aliviado as minhas dores. Sinto-me abandonado como um náufrago no meio do mar. E que sou eu senão um náufrago, afinal? Por isso só em mim próprio posso confiar. Confiar em mim próprio? Que confiança poderei eu ter nestas linhas? Nenhuma. Quando volto a lê-las, o meu espÃrito sofre percebendo quão pretensiosas, quão a armar a um diário literário elas se apresentam! Nalgumas até mesmo cheguei a fazer estilo. A verdade, porém, é que sofro. Um homem tanto pode sofrer com um fato de seda como metido num saco ou dentro de uma manta de trapos. Nada mais.
Manuscrito, 27 Julho 1907 (original em inglês, incluso acima)