José Saramago

Portugal
16 Nov 1922 // 18 Jun 2010
Escritor [Nobel 1998]

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Natalmente Crónica

Vai o ano correndo manso entre noites e dias, entre nuvens e sol, e quando mal nos precatamos, chegámos ao fim, e é natal. Para incréus empedernidos como eu sou, o caso não tem assim tanta importância: é mais uma das trezentas mil datas assinaladas de que se servem inteligentemente as religiões para aferventar crenças que no passar do tempo se tornariam letra morta e água chilra. Mas o natal (tal como as primeiras andorinhas, o carnaval, o começo das aulas, e outras efemérides do estilo) está sempre à coca da atenção ou da penúria do cronista, para que se repitam, Pela bilionésima vez na história da imprensa, as banalidades da ocasião: a paz na terra, os homens de boa vontade, a família, o bolo-rei, a mensagem evangélica, o ramo de azevinho, o Menino Jesus nas palhinhas, etc., etc. E o cronista, que no fundo é um Pobre diabo a quem às vezes falta o assunto, não resiste à conspiração sentimental da quadra, e bota a fala de circunstância.

Acontece porém que tenho fortes razões para não estar de bons humores, o que me permite esquivar-me desta vez, se alguma outra caí em tão ingénua fraqueza, ao jogo cúmplice do amplexo universal. De mais sei eu que na enfiada de abraços há sempre os que apertam e os que são apertados. De mais sei eu que a confiança é, em muitos casos, a armadilha que a nós próprios armamos, e para ela é que os outros nos empurram sorrindo. Por isso, esta crónica de natal não vai passar do fala-falando que é a minha única voz possível quando haveria lugar para gritos. Mas o leitor também lá tem a sua vida, quem sabe se dura e difícil, e não há de aceitar que eu lhe agrave as amarguras. Desculpe o desabafo.

Se a mim mesmo proíbo falar dos lugares-comuns da época natalícia, se igualmente me proíbo trazer para o terreiro a gaiola das fúrias pessoais, e mais ainda abrir-lhes a porta - que resta para a crónica? Um mundo de coisas, se eu estivesse em disposição de escolher uma, encontrar-lhe o jeito, surpreendê-la a olhar para outro lado e caçar-lhe o perfil secreto - que é, afinal, em que se resume a arte de escrever. Mas hoje, não. Tudo quanto dissesse teria um ressaibo ácido, não creio que escapasse uma flor a tanta secura. Que direi, então?
Falarei de si, leitor. Dou-me ao gosto de imaginar que já ganhou um pouco o hábito de parar no rodapé desta página, que algumas vezes aplaudiu e falou aos amigos, que outras vezes não esteve de acordo e disse, enfim, que estas colunas conseguiram ocupar um pequeníssimo espaço na sua vida. É o máximo que posso desejar. Mas agora quereria que descesse um pouco mais ao fundo e fizesse comigo a descoberta do que representa, para quem escreve, a pública exibição do que sente e do que pensa, do que projeta e do que realizou antes, ou falhou. Sobretudo, o cronista, porque faz da matéria da vida (da sua e da alheia, deste mundo e do outro) a ponte de comunicação e a própria comunicação, acho eu que a muito se atreve e arrisca. Não pode ser um reflexo indiferente, um arranjador de notícias que mesmo quando relatam catástrofes têm sempre alguma coisa de impessoal e distante. Há de afirmar-se em cada palavra que escreva, de tal maneira que à terceira linha se acabaram os segredos e o leitor não tem mais remédio que uma destas duas atitudes: ou senta o cronista à sua mesa, como faz aos amigos, ou fecha-lhe a porta na cara, como aos importunos, deixando-o a arranhar desanimadamente a bandurra.

Ora nós estamos no natal. Não me deixe o leitor cá fora, porque o frio aperta e a maldade das gentes ainda é pior do que o frio, a chuva gelada ou a lama. (A maldade das gentes, tome bem nota o leitor no seu caderno, é pior do que a lama.) Fico pois aqui sentado, ao canto da mesa, e sou uma testemunha sorridente das suas alegrias, se está nessa maré, ou tento compreender as suas tristezas, se a roda corre contra si. E podemos recordar os casos que lhe contei no desfiar dos dias, dir-lhe-ei o mais que então não pude dizer, e, sobretudo, ficarei calado a ouvi-lo falar da sua própria vida, que, como a Nau Catrineta, também tem muito que contar. Saberei que malhas e nós tecem uma existência que não é a minha, esta que aqui ando a contar, e uma vez mais descobrirei, sempre com o mesmo espanto, que todas as vidas são extraordinárias, que todas são uma bela e terrível história. Ficaremos calados e pensativos, a ouvir o relógio que vai matando os segundos à nascença para que nós possamos dizer o tempo que vivemos.
Talvez daqui a um ano nos voltemos a encontrar neste mesmo sítio. Tornarei a dizer: «Vai o ano correndo manso entre noites e dias, entre nuvens e sol, e quando mal nos precatamos, chegámos ao fim, e é natal.» Para que tenha justificação o meu título de hoje. Para que a crónica de natal seja natalmente crónica. Mas não desta maneira.

José Saramago, in 'A Bagagem do Viajante'




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