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José Saramago

Portugal
16 Nov 1922 // 18 Jun 2010
Escritor [Nobel 1998]

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O Sorriso

Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir (verbo intransitivo) é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos. Como se vê, está tudo errado. Começa logo por chamar intransitivo ao verbo, o que, tal como aprendemos na escola, exprime uma acção que, praticada pelo sujeito, se aplica a ele próprio e não passa para outro objecto ou outrem, e é, portanto, intransmissível. Recuso-me a aceitar que o sorriso seja um acto intransmissível. E quanto a dar por suficiente a contracção muscular, temos conversado.

O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.

Não há dois sorrisos iguais. Não falando ja no sorriso de Gioconda ou do anjo de Reims, que renuncio a decifrar, temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.

O Sorriso (este, com maiúscula) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.

Mas eu falava de gente, de nós, que fazemos a aprendizagem do sorriso e dos sorrisos ao longo da vida própria e das alheias. Nós que já corremos a gama toda dos sorrisos circunstanciais e a encaixámos numa só definição. E que, como é costume nestes casos, fizemos dessa definição a chave que não abre a porta que nos tapa o caminho. Pois o Sorriso está por trás dessa porta, como um tesouro de que só conhecemos breves e agudas cintilações, qualquer coisa como uma história vertiginosa, uma promessa de universos, um esplendor definitivo.

A tudo isto é que eu chamo sabedoria. Oponho à ironia o sorriso, este que é compreensão e serenidade, única arma contra o absurdo que vive paredes-meias connosco, couraça contra as agressões — estrada real que se quer desimpedida de miragens e alienações. E chamo-lhe a ferramenta perfeita da transformação, porque com ela sabemos o valor do que tomamos e abandonamos, porque já o sabíamos antes e estamos preparados.

Dir-me-ão que não cabe tanto no sorriso. Eu digo que cabe. Soube-o a noite passada, quando foi ele a única resposta para a insónia e para os monstros do pesadelo nascido no sono onde o corpo acabou por deslizar, cansado e aflito. Sorrir assim, mesmo sem olhos que nos recebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente transmissível. O ponto está em haver quem o conjugue.

José Saramago, in 'Deste Mundo e do Outro'




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