Prazer ou Dever
Vivemos na idade do dever, do parecer e do querer ser. São verbos que não incluem o melhor e mais importante verbo de todos, tão desconsiderado que pensamos nele como um simples substantivo: prazer. O politicamente correcto (um advérbio sempre a espera de definições defensáveis, seguido por um adjectivo insuportavelmente puritano e volúvel) torna-se no contrário do prazer: num castigo.
Dizer «apraz-me» parece um tique do século XIX mas é, na verdade semântica e gramatical, a indicação rigorosa que há qualquer pessoa ou coisa ou noção que nos dá a melhor de todas as coisas: o prazer.
Hoje as pessoas descrevem o amor e a amizade como bons sentimentos que conduzem a esforços e sacrifÃcios que, não havendo amor ou amizade, não seriam feitos.
«Isso é que é amor!» e «isso é que é amizade!», proclamam compadres e comadres quando encontram exemplos deprimentes e dolorosos de lealdades amorosas e amigáveis que foram castigadas até ao último limite da humanidade.
O prazer não é a mesma coisa que o egoÃsmo - mas parece-se, felizmente, com ele. As duas únicas diferenças vêm do facto de haver duas pessoas diferentes. A sorte de quererem, egoisticamente, a mesma coisa um do outro é o prémio de se ser descabido e aventureiro.
A verdade é que amamos quem amamos e somos amigos de quem somos porque nos dão prazer; porque nos aprazem. O mérito é como a justiça e a moralidade: é um ponto de vista de quem consegue convencer-se, erradamente, que tem razão.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público (7 Nov 2015)'