Para a Salvação da Democracia
Ora a democracia cometeu, a meu ver, o erro de se inclinar algum tanto para Maquiavel, de ter apenas pluralizado os prÃncipes e ter constituÃdo em cada um dos cidadãos um aspirante a opressor dos que ao mesmo tempo declarava seus iguais. Ser esmagada pelos condottieri que dispõem das lanças mercenárias ou pela coalizão dos que manejam o boletim de voto é para a consciência o mesmo choque violento e o mesmo intolerável abuso; um tirano das ilhas vale os trinta de Atenas e os milhares de espartanos. Pode ser esta a origem de muita reacção que parece incompreensÃvel; há almas que se entregaram a outros campos porque se sentiam feridas pela prepotência de indivÃduos que defendiam atitudes morais só fundadas na utilidade social, na combinação polÃtica. E de facto, o que se tem realizado é, quase sempre, um arremedo de democracia sem verdadeira liberdade e sem verdadeira igualdade, exactamente porque se tomou como base do sistema uma relação do homem com o homem e não uma relação do homem com o espÃrito de Deus. Por outras palavras: para que a democracia se salve e regenere é urgente que se busque assentá-la em fundamentos metafÃsicos e se procure a origem do poder não nos caprichos e disposições individuais, mas nalguma coisa que os supere e os explique, aprovando-os ou reprovando-os. O indivÃduo passaria a ser não a fonte mas o canal necessário ao transporte das águas; nenhuma autoridade sem ele, nenhuma autoridade dele. Seria assim possÃvel sacudir de vez as morais biológicas que nos têm proposto e, construindo um decálogo sobre os princÃpios divinos, ligar-lhe indissoluvelmente a polÃtica com uma simples extensão ou como outro aspecto de uma idêntica actividade. Não vejo outro alicerce senão o entendimento, o que, fazendo do animal a pessoa, ao mesmo tempo se coloca acima do indivÃduo e se impõe como norma universal; e as maiorias, assim, só viriam a obrigar quando as suas resoluções coincidissem com a razão e com os fins últimos que a Humanidade se propõe atingir.
Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes'