Diário do Último Ano

por: Florbela Espanca
Portugal
8 Dez 1894 // 8 Dez 1930
Poetisa

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18 Citações

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Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir — todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.
Não tenho forças, não tenho energia, não tenho coragem para nada. Sinto-me afundar. Sou o ramo de salgueiro que se inclina e diz que sim a todos os ventos.
Foram-se, há muito, os vinte anos, a época das análises, das complicadas dissecações interiores. Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros... talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto.
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Até hoje, todas as minhas cartas de amor não são mais que a realização da minha necessidade de fazer frases. Se o Prince Charmant vier, que lhe direi eu de novo, de sincero, de verdadeiramente sentido? Tão pobres somos que as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verdade!
Faço às vezes o gesto de quem segura um filho ao colo. Um filho, um filho de carne e osso, não me interessaria talvez, agora... mas sorrio a este, que é apenas amor nos meus braços.
Um homem sem vontade, sem energia, sem coragem, nunca pode ser verdadeiramente amado.
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Guardar-me intacta, como um cristal transparente, para quê? Mas não imitemos Jeremias... só na alma é que a lama se não apaga; aquela com que nos salpicam, sai com água limpa.
Estou tão magrita! A lâmina vai corroendo a bainha, a pouco e pouco, mas implacavelmente, com segurança. Devo ter por alma um diamante ou uma labareda e sinto nela a beleza inquietante e misteriosa das obras incompletas ou mutiladas.
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