A História e o Progresso ao Sabor do Vento
Na sua maior parte a história faz-se sem autores. Não acontece a partir de um centro, mas da periferia. De pequenas causas. Talvez não seja tão difÃcil como se pensa fazer do homem gótico ou do grego antigo o homem da civilização moderna. Porque a natureza humana é tão capaz do canibalismo como da crÃtica da razão pura; é capaz de realizar as duas coisas com as mesmas convicções e as mesmas qualidades, se as circunstâncias forem propÃcias, e nesses processos a grandes diferenças externas correspondem diferenças internas mÃnimas.
(...) O caminho da história não é o de uma bola de bilhar que, uma vez jogada, percorre uma determinada trajectória; assemelha-se antes ao caminho das nuvens, ou ao de um vagabundo a deambular pelas vielas, que se distrai a observar, aqui uma sombra, ali um magote de gente, mais adiante o recorte curioso das fachadas, até que por fim chega a um ponto que não conhece e por onde nem tencionava passar. Há no decurso da história universal um certo erro de percurso. O presente é sempre como a última casa de uma cidade, que de certo modo já não faz bem parte do casario dessa cidade. Cada geração pergunta, com espanto: Quem sou eu, e quem foram os meus antepassados? Devia antes perguntar: Onde estou? e partir do princÃpio de que os seus antepassados não eram diferentes, apenas estavam num lugar diferente. Se assim fosse, já terÃamos feito alguns progressos.
Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'