A Ilha de uma Só Mulher
Quando nos deitamos juntos, parece que nos deitámos juntos a vida toda. E, contudo, parece também que é novamente a minha primeira vez, o rosto dela assumindo expressões diferentes, o seu corpo exalando cheiros e reverberações, a própria atmosfera em redor de nós recombinando-se de modos para mim desconhecidos — a graça insidiosa de uma manhã de sol, o encanto desvairado de um fim de tarde à chuva, a sugestão aflita de um temporal a oeste.
Encontramo-nos no Monte, a maior parte das vezes, embora também já tenhamos estado juntos no armazém, depois de o T.-G. dar por finda a jornada e ir à sua vida. Deitamo-nos, e então os seus olhos de ébano ganham aquela radiância infantil que se lhe acrescenta às feições sonhadoras e misteriosas.
Há dias em que, ao apagar a luz do meu quarto, a última decisão que tomo é a de acabar com tudo. Há que ser um louco para fazer o que eu estou a fazer. Há que ser um criminoso. Mas há também que ser um artista, e, quando acordo de manhã, é o artista a tomar conta dos passos.
Então, não encontro outro desígnio, ao longo de todo o dia, senão procurar nova oportunidade de me deitar com ela. E, se ela tem afazeres, ou compromissos seja de que natureza for, ou simplesmente de evitar que o marido desconfie, insisto tanto que acabo por vencer a sua resistência.
«Não podemos, Hansi», diz-me, numa fuga derradeira. Mas, quando o diz, já eu a abracei e a beijei e tudo está em curso — para impotência dela, para minha própria impotência.
Não creio que tenha noção da atracção que exerce. Não sei se sabe do modo como nos afecta, a mim e aos demais. Ou talvez o tenha sabido sempre, como quem carrega uma cruz demasiado pesada e, incapaz de salvar toda a gente, aceite, por misericórdia, apaziguar-me um pouco a mim.
Jamais o conseguiria. Acabamos, ficamos ali uns instantes, respirando pesadamente um contra o outro, e logo eu me inclino para ela e pouso o meu olhar no seu, até que aceite beijar-me mais uma vez, a minhas veias latejantes de novo.
Só no fim sinto as fragrâncias que nos rodeiam, aquele odor ordinário das flores de Verão, o vento que vem do mar, o calor que brota da terra. Não é incomum lembrar-me de Mr. G. Nem do R. — até da M. Mas continuo, mesmo assim. Não consigo parar.
E é de facto como se soubesse fazê-lo. Como se já o tivesse feito antes. Como se o meu corpo não só tivesse vontade, mas soubesse por onde ir, onde se deter e avançar.
Então, deito-me numa paz, na impunidade que apenas nos sonhos se nos consente, e deixo-me quieto até que tenha de procurar o beijo dela.
Sou o viajante enfeitiçado que encontrou a ilha de uma só mulher e ela a mulher que facilmente me escravizaria, mas afinal me poupa. Vivemos à margem da física óptica e da propriedade da matéria. Apreciamos as estrelas e é lá que estamos — num lugar onde o tempo e o espaço funcionam de outro modo, vergados ao poder de uma força centrífuga e avassaladora.
Nos nossos corpos nus, rodeados por um mar brumoso e sem fim, o espiritual e o físico fundem-se numa coisa só, de um tal modo que não poderíamos explicá-lo aos práticos deste tempo. Partilhamos a dor e o deleite, e tudo o mais há-de ficar a cargo dos que vierem depois de nós, os anatomistas e os filósofos, consoante algum deles possa detectar os indícios de que tenhamos impregnado o mundo.
Joel Neto, in 'Meridiano 28' (Excerto do romance)