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Claudio Magris

Itália
n. 10 Abr 1939
Escritor

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Cenas Mudas de um Casamento

À mesa de uma taberna no Carso triestino, os amigos que vieram apanhar um pouco de ar fresco observam com ironia um casal numa outra mesa, verosimilmente marido e mulher. Sentados um à frente do outro e diante dos seus copos, os dois não trocam uma palavra, armados cada um deles com o seu iPhone ou outra geringonça semelhante; por vezes falam, não com o companheiro de mesa, tão-só com interlocutores invisíveis, mas geralmente silenciosos, absortos em si mesmos e nos seus próprios aparelhos. Anos antes teriam provavelmente entreposto entre si um jornal, uma cortina de papel quase de ferro, agora substituída por novos muros isolantes mais sofisticados.

Numa outra mesa, alguns sorrisos sarcásticos da praxe, que sublinham o prazer de nos sentirmos censores dos tempos e da decadência das relações humanas autênticas. Solteiros e solteiras, em particular, sentem-se gratos por poderem tocar com a mão no enfado do casamento, na distância que se insinua entre um casal estável. Em geral, serpenteia a satisfação de criticar a banalidade e o estereótipo do outro — a serem banais, são sempre os outros —, de nos sentirmos livres das convenções e das rotinas, almas autênticas prontas a ver em toda a parte outras que não o são, e a apiedar-se delas, criticá-las, corrigi-las, libertá-las da mecânica repetição da sua existência, ensinar-lhes como se vive. Em cada um dos fustigadores da banalidade quotidiana há um professor primário, talvez um dos tempos da outra senhora, com a régua na mão.

A que mesa estão sentados os clientes mais vivos? De quando em vez os dois prováveis cônjuges, ainda que fugazmente, olham um para o outro; um instante de tranquila, misteriosa ternura. Ela, uma vez, toca-lhe ao de leve no braço. Por que razão, para ser mais verdadeira, deveria desligar a sua engenhoca digital, que nada retira àquela carícia? E por que razão estar em silêncio na companhia do outro haverá de ser sempre um sinal de aridez e de distância? É certo, a estranheza pode ser um indício de infelicidade e uma forma de privar as pessoas — sobretudo quando se trata de pessoas que se amam ou que se amaram ou que se apercebem dolorosamente de que se amam mas de uma forma reciprocamente incompatível daquele diálogo onde apenas verdadeiramente existimos.

Mas a feroz e desumana engrenagem da realidade priva-nos demasiado frequentemente de um outro bem: da solidão, da nossa necessidade de estarmos sós, de vivermos pelo menos umas poucas vezes naquele faroeste do nosso coração em que somos por vezes realmente nós próprios apenas se estivermos sós, como o cowboy dos velhos westerns. Amar significa também compreender e proteger aquela solidão de que o outro precisa; compreender que ele ou ela pode querer almoçar fora de casa não só porque tem um banal e sempre respeitado almoço de trabalho que não ofende nenhum casamento, mas porque naquele dia precisa de estar unicamente com os seus pensamentos, com o seu vagabundear rafeiro, e perder-se. E, por sua vez, diz um verso de Rilke «Os próprios amantes [...] não deparam constantemente com limites?»

Os dois presumíveis cônjuges, naquela mesa, não têm portanto nenhum dever de serem loquazes nem outros têm o direito de saber se são felizes ou infelizes, se e como se amam, se e que violências se infligiram à vez. A verdade humana é também o respeito por esta opacidade, direito inalienável de todos nós, mesmo que incessantemente violado. Para quê esta mania de vasculhar a vida dos outros, tentando passá-la a pente fino, pretendendo saber a sua verdade e muitas vezes conspurcando-a com esse mesmo cerco, sempre convencido de agir pelo amor daqueloutros que talvez preferissem que ficássemos mais distantes e tranquilos?
Como diz Dom Quixote, cada um terá de se haver com os seus pecados.

(23 de agosto de 2013)

Claudio Magris, in 'Instantâneos'




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