Hábito e Inércia
Ao princípio, somos carne animada pela alma; a meio caminho, meias máquinas; perto do fim, autómatos rígidos e gelados como cadáveres. Quando a morte chega, encontramo-nos em tudo semelhantes aos mortos. Esta petrificação progressiva é obra do hábito.
O hábito torna-nos cegos às maravilhas do mundo - indiferentes e inconscientes perante os milagres quotidianos -, embota a força dos sentidos e dos sentimentos - torna-nos escravos dos costumes, mesmo tristes e culpados: suprime a vista, espanto, fogo e liberdade. Escravos, frígidos, insensatos, cegos: tudo propriedade dos cadáveres. A subjugação aos hábitos é uma subjugação da morte; um suicídio gradual do espírito.
O hábito suprime as cores, incrusta, esconde: partes da nossa vida afundam-se gradualmente na inconsciência e deixam de ser vida para se tornarem peças de um mecanismo imprevisto. O círculo do espontâneo reduz-se; a liberdade e novidade decaem na monotonia do vulgar.
É como se o sangue se tornasse, a pouco e pouco, sólido como os ossos e a alma um sistema de correias e rodas. A matéria não passa de espírito petrificado pelos hábitos. Nasce-se espírito e matéria e termina-se apenas como matéria. A casca converteu em madeira a própria linfa.
A casca é necessária para proteger o albume, mas uma árvore toda casca está morta. Os hábitos da vida vegetal permitem um campo mais vasto à alma, mas se a vida da alma se afunda nas satisfações mecânicas, a queda está próxima.
(...) O hábito avilta até os actos mais belos e sagrados do homem. O beijo, se se torna gesto usual, não passa de troca de saliva: o amor evacuação de um líquido incomodativo. A mesma oração, reduzida a algaraviada mecância, em vez de hino do coração converte-se em ginástica de memória e dos lábios.
O hábito nasce de um pecado - a inércia - e ajuda a propagação e perpetuidade de todos os pecados. Por inércia, prefere-se repetir os actos dos outros, em vez de procurar, com o esforço do pensamento, os melhores. Por inércia, costumam repetir-se os maus actos, porque são infinitamente mais comuns e visíveis, e não nos queremos cansar a procurar os heróicos, muito mais raros e penosos.
Por inércia, imitamos os outros maus actos, porque estão mais conformes com a enfermidade da natureza vulnerada: poupamos o trabalho de a modificar e vencer. Por inércia, persistimos nos actos limitados, os quais se tornam tanto menos cansativos quanto mais se repetem.
Com esta convergência de preguiças, formam-se e consolidam-se os hábitos - quase todos, pela força das coisas, pecaminosos. O hábito não cria as culpas, mas radica-se tanto que as torna quase inextirpáveis. É um pecado que conduz à incurabilidade de quase todos os pecados. A conversão a Deus não passa de um esquartejamento violento de maus hábitos.
As vitórias mais elevadas do poder espiritual são insurreições contra o hábito. A poesia é um recalcitrar perene na queda na visão usual, de manter a virgindade estúpida do sempre novo; a filosofia é a efracção repetida de vez em quando das formas das antigas experiências para descortinar a fluidez subterrânea de ser sempre diferente; a santidade é a libertação da baixeza dos hábitos cómodos e comuns para ascender ao sempre novo milagre do amor. E com este triunfo sobre o usual, poetas, filósofos e santos são considerados loucos pelas multidões dos autómatos empedernidos na baixeza dos hábitos.
Giovanni Papini, in 'Relatório Sobre os Homens'