Miguel Esteves Cardoso

Portugal
n. 25 Jul 1955
Crítico/Escritor/Jornalista

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Não Estás a Ver

Todos os dias, todos nós assistimos - seja como utentes, vítimas ou observadores - a uma prática irritantemente portuguesa.
Alguém faz uma longa e pormenorizada descrição de uma coisa extraordinária (ou, mais amiúde, banal) que lhe aconteceu. Nós ouvimos, com paciência e empatia exageradas, e comentamos conforme as mais bem equilibradas expectativas.
Descrevem-nos um momento de horror ("atravessou-se um gato na estrada, tive de desviar-me e quase bati noutro carro") e, quando nós simpatizamos (muitos de nós tendo passado pela mesma experiência de medo de morrer ou matar), o nosso interlocutor dá como perdidos os quartos de hora que gastou a dar-nos uma narrativa completa e, apesar da nossa sincera afirmação de empatia ("Coitado! Sei exactamente o que sentiste!"), atira-nos invariavelmente à cara a mesma psicopática acusação: "Não estás a ver!"
É português pensar que aquilo que se sente ou que nos acontece não pode ser sentido ou acontecer a mais ninguém. Temos a ideia estúpida, avançada por Camões - do saber de experiência feito -, que cada um sabe o que sabe e vive o que vive. Dizer "não estás a ver" a quem vê perfeitamente - o mais das vezes espontaneamente - é uma espécie de distanciação. Continuamos cá.
A bem ver, todos nós somos testemunhas uns dos outros e sabemos muito bem, por muito que nos distanciemos com diferenças pequenas ou maiores, que vamos todos dar ao mesmo. E que o repto de não estarmos a ver é a prova de estarmos.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público (23 Out 2011)'




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