Nós, Portugueses
Nós, portugueses, somos assim. Delegamos muito. Enquanto ainda houve esperanças de regresso de D. Sebastião, passámos os dias (sobretudo as manhãs de nevoeiro) a olhar para a barra do Tejo, à espera do Desejado que nos viria libertar do jugo castelhano. Mesmo quando os anos passados nos estavam pacientemente dizendo que com D. Sebastião já não poderíamos contar, demos um jeito para a banda do milagre: el-rei voltaria, nem que fosse daí a cem anos, tão novinho como quando partira, e traria as mezinhas que os nossos males reclamavam. Nanja nós, que não reclamávamos nada. Ficou-nos esta balda de contar que alguém nos apadrinhasse e nos desse uma carreira. Dar exemplos seria repetir os manuais da história pátria. Dêmo-los por dados.
Quando se instaurou por cá a lotaria da Santa Casa, não houve português que não passasse a esperar tudo da sua Misericórdia. Ali estava, a troco de uns tostões e de um papel colorido que já se chamou «cautela» (ah, as coincidências de certos nomes!), a solução final, aquela que permitiria construir a inefável casinha lá na terra, mandar o trabalho ao diabo que o inventou, ter aí dois três prédios de rendimento — e o mais são histórias.
Mais recentemente caiu-nos em casa a fabulosa invenção do Totobola. Agora, sim. O português, sempre relutante, sempre relapso em presença das matemáticas, espremeu as meninges, refrescou os lobos cerebrais, e deu-se todo à tarefa gigantesca das duplas, triplas e múltiplas. E quando ouviu dizer que até aos pastores do Alentejo, que mal conheciam uma de xis, adregava calhar fortuna e qualidade de totalistas únicos, não sei como vos conte: com a desinteressada ajuda da televisão, de mil e um folhetos que a troco de poucos escudos davam as cem receitas de bem acertar no boletim — os serões familiares tornaram-se animados como nunca o haviam sido antes. Ao filhinho mais novo, começou-se a ensinar a dizer «um-xis-dois» antes do tradicional «papá-mamã»; ao avô senil, que já esquecera o vocabulário todo, deu-se conforto e assistência para que ao menos conservasse na memória aquelas miraculosas palavras. E desta maneira se confiou à infância e à velhice, à decrepitude e à ignorância, a chave da riqueza.
E não levamos caminho de cura. Há-de haver sempre quem nos proteja e defenda, quem tome conta de nós, quem nos pegue pela mão para atravessarmos a rua, mesmo que a luz vermelha trave a circulação dos automóveis. Há-de haver sempre quem nos aconselhe leituras, filmes e peças de teatro. Quem nos explique minuciosamente (ou sem explicação nenhuma) como devemos pensar e quando, e se é hora de falar ou de estar calado. E se é de falar, forçoso é também que nos ensinem a articular as palavras, que nos lubrifiquem os queixos emperrados, que nos animem e incitem, porque somos tímidos e nao gostamos de ser objecto da atenção e da curiosidade activa dos outros.
Delegamos muito. Delegamos tudo. Com três batatas no prato, futebol aos domingos, e feriados que calhem em dia de-semana (com ponte, se possível), temos o português feliz. Somos sóbrios, de gostos simples, brandos nos costumes e amigos do nosso amigo — que nunca sabemos quem seja. Temos a vocação da boa vida, de uma regalada vida que com pouco se contenta. Somos bons e confiantes. Que Deus nos abençoe — que de nós não virá mal ao mundo. Nem bem.
Nós, portugueses, somos assim. E eu, que português sou, não sei se devo rir, se chorar.
José Saramago, in 'Deste Mundo e do Outro'