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Rosa Lobato Faria

Portugal
20 Abr 1932 // 2 Fev 2010
Poeta/Escritora/Actriz

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O Jogo da Sedução

A culpa é toda sua. Não me diga que não, que eu bem lhe leio o subtexto erótico na forma dançada como você passa por ele, inundando-o do seu charme, do seu perfume e da sua respiração rumorejante. Faz que não vê, mas vê. Faz que não quer, mas quer. O homem fica tonto e você gosta. Traça a perna diante dele daquela forma insólita, mostrando dessous que deixaram de o ser, tilinta coisinhas de metal quando lhe dá o perfil e o recorte esplêndido da sua pequena orelha e o botão da blusa, não me diga que o perdeu, anda desabotoada três dedos abaixo do ponto de viragem, viragem da cabeça dele, entenda-se.

Sim, sim, eu percebi que cortou o cabelo dessa forma ultrajante para valorizar o pescoço, a linha dos ombros, e ficar mesmo com o toque de androgenia indispensável para acordar nele todas as componentes. O sujeito sucumbe e você diverte-se.
O processo arrasta-se há meses. Você não quer coisa nenhuma definida. Você não quer. Gosta do jogo e joga. Mas não quer mesmo? Ah, reside aí a volúpia da sua estratégia. Você quer fingir que não quer, porque querer completamente é completamente sem história. É a rotina do costume e isso não é excitante, nem subtil, nem perverso.

Agora mesmo eu vi. Você tem reduzido o ângulo de beijinho, aquele do pseudo-casual «Olá, está bom?». Começou a dez graus do eixo e já vai no grau dois. Com uma pequena oscilação para grau um. Porque um destes dias você foi apanhada de surpresa (ou fez de propósito?) no grau zero... Fez de propósito, claro, que ingenuidade a minha. Você não deixa nada ao acaso. Grau zero era a jogada daquele dia, mas o eixo apresentou-se húmido, prometedor... Quando a sua boca roçou de leve e logo se retirou, você ficou presa no seu próprio feitiço, a sua voz enrouqueceu um pouco mais, você pousou a ponta dos dedos na garganta naquele gesto que lhe é peculiar e disse «Ah!...». Afastou-se devagar, não sem primeiro filtrar entre as pestanas um olhar macio de pantera, descer até à zona do botão perdido as unhas curtas, sem verniz e sem escrúpulos.

O que acontece a seguir? Há que manter a ambiguidade. Não lhe interessa queimar as etapas que, pela lógica dos acontecimentos, se haveriam de seguir Esse é o procedimento corrente e você recusa a vulgaridade. Beijo trocado? Esse seu corpo apetitoso como um barco — desculpe se cito Pessoa, mas você tem realmente alguma coisa de gomo —, esse seu corpo, dizia, apertado contra a caxemira cor de areia? De forma nenhuma. Seguir-se-ia um óptimo jantar e isso era o fim de tudo. Se náo vejamos. Você é interessantíssima quando conversa, mas tem tendência, entre um tinto de 1978 e uma boa música de fundo, a tornar-se um tanto sincera e era capaz de lhe dizer que o acha o homem mais fascinante de toda a empresa; que a forma como ele utiliza o humor a deixa sempre comovida e excitada, e que o after-shave dele se harmoniza admiravelmente com camisas de seda italiana e absurdas preferências por pintura flamenga e mulheres ruivas. A seguir ele pousaria o casaco nos seus ombros, respirando o desejo que se desprende da sua nuca e levá-la-ia para uma nudez total, um contacto absoluto, um grito partilhado.

E depois? Mais nenhum mistério, mais nenhuma sedução. Você saberia tudo sobre a temperatura do corpo dele, a capacidade de a satisfazer, o seu grau de preconceito, a sua fragilidade, naquele momento em que os homens parecem tão indefesos e carentes e perdidos, e talvez você não fosse capaz de amá-lo bastante para continuar a negaceá-lo com beijos do grau um, depois de o ter visto na sua nudez inicial.

Não. É esta a beleza do jogo. Ele deseja-a furiosamente mas não mostra. Você perde a cabeça só de ouvir o som da sua voz, de olhar-lhe os dedos, os pulsos, o rosto de estátua, o nariz grego e a boca. Você evita os olhos, não quer denunciar--se, continua desprendida e bela, passeia devagar o seu corpo de barco na madrugada pela penumbra dos gabinetes, intercepta-lhe o campo magnético, passeia a polpa do dedo polegar entre os dentes, mostra uma ponta de língua cor-de-rosa, despe camisolas para que conste que não usa nada sob a blusa, acaricia os seus próprios caracóis cor de fogo no sítio exacto onde ele gostaria de perder as mãos, cruza e descruza as coxas, deixa entrever rendinhas, pouca coisa, é quase tudo pele dourada e por fim chega dele, diz até logo, tenho um encontro, dá-lhe um beijo de grau dois, vagaroso mas de grau dois, o tempo de ouvir a maçã de Adão oscilar, o tempo de sentir o sangue espesso nas veias de ambos, a voz presa, um arrepio no ventre e já saiu com um oscilar de labareda.

Eu sei. É essa a sua natureza. Nunca houve feiticeira que desprezasse o prazer, o poder, a vertigem de comandar o fogo.

Rosa Lobato Faria, in 'Pedra Rara - Dispersos e inéditos'




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