O Ódio ao Intelectual
Com a humildade convinhável aos grandes atos de contrição pública, tenho de confessar uma anormalidade: não gosto de revistas. O espetáculo português por excelência (não seria preferível dizer lisboeta?), a nossa mais importante contribuição no domínio das formas teatrais, causa-me um aborrecimento infinito, como se assistisse (e é verdade) a algo profundamente deprimente. A banalidade das palavras, o arroz mole e sem surpresas dos trocadilhos, que já eram velhos em tempos de D. Pedro e D. Miguel, o pau-de-dois-bicos da alusão política - tudo isto compõe um zumbido entorpecedor que rapidamente se transforma em tédio. E quando rio (que remédio!) é sempre um pouco de mim, pela fraqueza.
De longe em longe, deixo-me arrastar. Lá vou contrariado ao cepo, submeter-me à tortura de duas horas de um espetáculo que se apregoa irreverente e não vai além da facécia, que se diz contestador e sempre foi uma das peças da engrenagem conformista. Se levo ilusões de possível novidade à entrada, não trago nenhumas à saída: o processo de fabrico é igual, os ingredientes não variam, as ousadias são cautelosas - e a frustração, essa, sim, é que não tem limites.
Eu sei, todos sabemos que o espetáculo visto e ouvido não é o espetáculo pensado e escrito, que os artistas têm de conformar-se com os maus textos (não há outros), com a música má (não se escreve música nova, remói-se a antiga), com o próprio gosto do público que, invariavelmente, prefere encontrar no palco o sistema de referências que lhe é familiar e o não obriga a excessivos esforços mentais. Sabemos tudo isto. Sabemos também que a arte (mesmo nas suas manifestações menos ambiciosas) reflete sempre o rosto da comunidade que a produz. Não é pois de estranhar que a sociedade lisboeta (digo lisboeta, não digo portuguesa) desfile assim e fale desta maneira no palco do teatro. Tudo confere. Até o preconceito citadino de fazer do provinciano um parolo, embora, neste caso, pareça promovê-lo à dignidade de bufão a quem, porque o é, se consente a licença de proclamar as verdades possíveis.
Isto são coisas ditas e repisadas que não irão cortar um dia sequer na carreira de qualquer desses espetáculos - nem era esse, aliás, o propósito. A vida custa a todos, dizer mal é fácil, e eu sou, já o tenho dito, um homem pacífico que não se mete em polémicas e desafios. Há, no entanto, na revista portuguesa (vá, desta vez), uma constante que, sabe-se lá por que bulas, tem passado a seu salvo nas malhas mais ou menos apertadas da crítica: é o rancor, o desprezo, o ódio ao intelectual.
Nunca repararam? Os autores do poema (é assim que se chama, no dialeto teatral, o texto que temos a paciência de ouvir) não perdem nunca a oportunidade, ou inventam-na, de desferir uma bicada nessa não definida figura que tem por nome intelectual. A estocada resulta sempre: o público reage com o riso próprio de quem foi lisonjeado, e fica, decididamente, à espera de mais. Não tem importância: mesmo que a alusão não se renove, os assistentes já estão confirmados na preciosa e bem enraizada ideia em que vivem: «O intelectual, ora, o intelectual.» E assim se satisfaz toda a gente: o intelectual e o provinciano são dois ótimos temas de galhofa, dois extremos que na troça se aproximam.
Ora, se me permitem, gostaria de exprimir aqui um voto: o de que chegue a este país o dia em que todos os seus habitantes sejam intelectuais, o dia em que o exercício continuado da inteligência seja, não um privilégio de poucos mas a natural realização de todos. Não vejo por que há de ser sempre incompatível o desempenho de um ofício dito manual com o estudo contínuo, o esforço da inteligibilidade, que caracterizam (ou deverão caracterizar) o intelectual. Não vejo por que não há de ser precisamente intelectual o ator que contra o intelectual faz rir o público.
Longe de mim, evidentemente, a ideia de considerar intocáveis os «profissionais da inteligência». Merecem, como qualquer outra gente, ser expostos no palco da revista (que deveria ser pelourinho moral, e não o é), mas por motivos que nada teriam que ver com o facto de serem intelectuais: o oportunismo, o compromisso, a falta de carácter - quando destas mazelas sofram. Então, sim, implacavelmente, porque são males do espírito e não apenas contra o espírito.
Não haverá grandes probabilidades de nos salvarmos, se não salvarmos a inteligência. Até ao dia em que já não farão falta os intelectuais, porque todos o serão.
José Saramago, in 'A Bagagem do Viajante'