Portugal
Há nações que nascem feitas e nações que se fazem. Portugal é das que se fizeram, contra todos e contra tudo, e nunca teve sossego nas fronteiras, que chegaram a situar-se nos cinco continentes. Começou o seu caminho independente nas brumas da pré-história, dolménico, litoral, magro, debruado por um mar aberto e convidativo, que navegou desde logo em todas as direcções e transformou mais tarde no palco de uma das maiores façanhas de que a civilização ocidental se pode orgulhar. Microcosmo variegado, ora montanhoso, ora ondulado e plano, de cada miradoiro é inédito e diverso. Árido aqui, verdejante ali, terroso acolá, passeá-lo é conhecer em miniatura as feições aráveis da Terra. Sulcado por rios líricos ou dramáticos, consoante o leito, espelha-se neles ao natural o perfil da paisagem. Um Minho bucólico, uma Estremadura monumental, um Ribatejo toureiro. Invadido sucessivamente por muitos povos, a nenhum se submeteu inteiramente. Antes pelo contrário, resistiu-lhes a conviver. Na essência, permaneceu o mesmo, dono e senhor da sua personalidade profunda, livre, visionário, aventureiro, obstinado. E sempre cordial. Quem percorre o país de norte a sul pode queixar-se de tudo, menos dos panoramas e, ainda menos, das gentes. Austeras em Trás-os-Montes, sóbrias nas Beiras, graves no Alentejo, reservadas no Algarve, identifica-as, no entanto, a mesma índole solícita, prestante, disponível. Criaturas simples, chegadas ao húmus, tudo nelas tem ainda o sabor saudável do autêntico e primordial. Na maneira como trabalham, cantam, dançam, rememoram, o observador atento pode descobrir os sinais vivazes de uma sã tradição rural, comunitária, o vizinho a dar a mão ao vizinho, o velho a ensinar o novo, o prudente a avisar os incautos. Marginal à Europa, nem sempre a acompanhou nas suas proezas técnicas e antropotécnicas. E, nesse capítulo, à primeira vista, pode parecer retrógrado. Mas essa falsa inércia, esse ilusório sono letárgico, é apenas a paz de boa consciência de quem conhece o preço de certas cedências ao progresso. De quem lhe pressente a efemeridade. No decorrer dos séculos, este povo pacífico, que sempre se soube defender e nunca soube agredir, aparentemente parado no tempo, foi a própria encarnação do espírito renovador, na tolerância, na curiosidade, na inventiva. O primeiro a abolir a pena de morte, a dar a independência a uma das suas maiores colónias, a dobrar os muitos cabos das Tormentas. Original na maneira de ser, de sentir e de pensar, a cultura universal deve-lhe um modo específico de encarar a vida e os valores. Nos seus Cancioneiros, no seu rifoneiro, no seu artesanato, está documentada uma singularidade temperamental e intelectual que faz a admiração de quem a conhece. Todos os viajantes de boa-fé que nos visitaram no passado e nos visitam no presente a testemunham e enaltecem. Fundadora de novas pátrias, esta pequena pátria, que com os descobrimentos marítimos realizou a maior epopeia dos tempos modernos, arredondando definitivamente o globo nas mentes coevas, ainda hoje ajuda a povoar e a unir o orbe, num fluxo emigratório constante. E é essa vocação planetária, essa inquietação dispersiva que faz do português um peregrino das sete partidas, um cidadão do mundo. Despido de pruridos raciais, uma vez em terra alheia, miscigena-se, adapta-se, integra-se, mas sem perder nunca os traços nativos. E quando a saudade — um sentimento sem tradução afectiva e vocabular — o crucifica, regressa e retoma, na aldeia de onde saiu, o seu lugar de membro da junta de freguesia ou de mordomo da festa.
Claramente que, ao lado deste Portugal telúrico e arcaico, ainda não desfigurado na alma, escudado na sua castidade moral, existe um outro, contemporâneo do presente, cosmopolita e cultivado, que tem pergaminhos nas artes, nas letras, nas ciências, na política e na religião. Que erigiu Alcobaça e os Jerónimos, que escreveu Os Lusíadas, que pintou os Painéis de S. Vicente, que comentou Aristóteles e deu à Igreja um Papa e um Doutor.
Mas o Portugal letrado, por muito que tenha feito, não pode, nem de longe, nem de perto, comparar-se ao iletrado, pela tenacidade, pela honradez, pela audácia, pela graça espontânea e pela nobreza de sentimentos. E que o Portugal eterno, o que nunca traiu, o que dá esperança, é o das revoluções populares, o que trabalha dia e noite sem esmorecer, o que acaba sempre por ter a última palavra nos acontecimentos, o do arado e do remo. E ele que, anónimo e humilde, não cabe nas crónicas, mas avaliza alguns dos mais significativos passos da história da humanidade.
Miguel Torga, in 'Diário (1988)'