A Augusto de Campos
Ao tentar passar a limpo,
refazer, dar mais decoro
ao gago em que falo em verso
e em que tanto me rechovo,
pensei que de toda a gente
que a nosso ofício ou esforço,
tão pra nada, dá-se tanto
que chega quase ao vicioso,
você, cuja vida sempre
foi fazer / catar o novo
talvez veja no defunto
coisas não mortas de todo.
Você aqui reencontrará
as mesmas coisas e loisas
que me fazem escrever
tanto e de tão poucas coisas:
o não-verso de oito sílabas
(em linha vizinha à prosa)
que raro tem oito sílabas,
pois metrifica à sua volta;
a perdida rima toante
que apaga o verso e não soa,
que o faz andar pé no chão
pelos aceiros da prosa.
Nada disso que você
construiu durante a vida;
muito aquém do ponto extremo
é a poesia oferecida
a quem pode, como a sua,
lavar-se da que existia,
levá-la à pureza extrema
em que é perdida de vista;
ela que hoje da janela
vê que na rua desfila
banda de que não faz parte,
rindo de ser sem discípula.
Por que é então que este livro
tão longamente é enviado
a quem faz uma poesia
de distinta liga de aço?
Envio-o ao leitor contra,
envio-o ao leitor malgrado
e intolerante, o que Pound
diz de todos o mais grato;
àquele que me sabendo
não poder ser de seu lado,
soube ler com acuidade
poetas revolucionados.
João Cabral de Melo Neto, in 'Serial e Antes, A Educação pela Pedra e Depois, Rio de Janeiro, 1997'