A Má Consciência
- Levanta-se sempre muito cedo, sr. Spinell - disse a mulher do sr. Kloterjahn. Por acaso, já o vi sair duas ou três vezes de casa às sete e meia da manhã.
- Muito cedo? Oh, é preciso distinguir! Se me levanto cedo é porque, no fundo, gosto de dormir até tarde.
- Explique-nos como é isso, sr. Spinell
A senhora conselheira Spatz também desejava ser elucidada.
- Ora... se alguém tem o costume de se levantar cedo, parece-me, em todo o caso, que não precisa de ser tão matinal. A consicência, minha senhora, que coisa péssima que é a consciência! Eu e os meus semelhantes andamos toda a vida às turras com ela, e temos um trabalhão para a enganarmos de vez em quando e procurar-lhe umas satisfaçõezinhas estultas. Somos criaturas inúteis, eu e os meus semelhantes; fora algumas breves horas satisfatórias, arrastamo-nos na certeza da nossa inutilidade, até ficarmos a sangrar e doentes. Odiamos o que é útil, sabendo-o vulgar e feio, e defendemos esta verdade como se defendem as verdades absolutamente necessárias. E, contudo, estamos tão corroídos pela nossa má consciência que não achamos em nós um ponto são.
Além disso, a maneira como vivemos interiormente, a nossa concepção do universo, o nosso modo de trabalho... exercem uma influência terrivelmente deletéria, indeterminam-nos e enervam-nos, o que complica ainda mais as coisas. Arranjamo-nos, então, certos pequenos lenitivos, sem os quais não podemos de modo nenhum passar. Uma certa prudência, uma severidade higiénica na maneira de viver, por exemplo, é para muitos de nós uma necessidade. Levantamo-nos cedo, terrivelmente cedo, tomamos um baho frio, damos um passeio na neve... Ficamos assim razoávelmente satisfeitos connosco mesmos durante uma hora. Se me mostrasse tal qual sou, ficaria na cama até tarde, pode crer. No fim de contas, se me levanto cedo é por hipocrisia.
- Porquê, sr. Spinell? Eu chamo a isso saber uma pessoa dominar-se... Não é verdade, senhora conselheira ?
A senhora conselheira foi de opinião que, de facto, isso era uma pessoa saber dominar-se.
- Hipocrisia ou autodomínio, chame-lhe como quiser, minha senhora. Por mim, possuo um carácter a tal ponto honesto que me atormento de...
- Ora aí está; o senhor com certeza que se atormenta demasiadamente.
- É verdade, minha senhora: atormento-me demasiadamente.
Thomas Mann, in "Tristão"