José Luís Peixoto

Portugal
n. 4 Set 1974
Escritor

Publicidade

Ao Longo da Escrita deste Livro

No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mãe incentivou-me a dar um passeio. Há muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lês que treslês, mas mantém o hábito de, cuidadosa, depois de bater à porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: não te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, não tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capítulo altruísta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mãos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizá-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distância de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que não se alterou quando saí do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome é que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pôr-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panões carregados debaixo da última oliveira e os levaram às costas.
Não esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panões vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor. Os panões carregados de azeitonas e folhas foram despejados num monte, no extremo desse corredor. Então, fez-se silêncio. Era um fim de tarde muito nítido. Um dos homens aproximou-se do monte a segurar uma pá e, com jeito, encheu-a. Num movimento certo, preciso, lançou o seu conteúdo múltiplo ao longo do corredor de panões. No ar, estilhaçou-se. Sob um fundo de céu, as azeitonas separaram-se das folhas. As folhas ficaram a meio caminho, a darem voltas sobre si próprias, pequenas hélices detidas pela aragem, e as azeitonas continuaram até ao outro extremo do corredor de panões dobrados, onde caíram numa chuva de companheiras redondas. Recordo que as folhas de oliveira são verde-escuras de um lado e prateadas do outro, elegantes, e que as azeitonas, aquelas, são pretas, brilhantes, sem demasiada água em março, rijas. Esse gesto, essa história, repetiu-se até acabar o primeiro monte e, no outro extremo do corredor, haver um monte apenas com azeitonas.
Ao longo da escrita deste livro que estás a ler, tenho sentido que gostaria de poder fazer o mesmo com o que sei. No campo, num fim de tarde, estender esse conhecimento no ar, em pazadas, e assim separar aquilo que apenas presumo daquilo que foi mesmo. Por mais efeito que possa ter aquilo que presumo, é aquilo que foi mesmo que chega ao lagar, que alimenta. Aquilo que foi mesmo não é necessariamente aquilo que aconteceu. É algo muito mais importante, é a verdade. Sim, já sei, o que é a verdade? Sim, já sei, não sei.

José Luís Peixoto, in 'Livro'




Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade

© Copyright 2003-2025 Citador - Todos os direitos reservados | SOBRE O SITE