Chegarmos a Bastar-nos em Tudo
É possÃvel que um homem acabe, no final, por se apaixonar pela sua própria vida. É o que me está a acontecer, tem estado a acontecer-me desde há uns meses. A minha alma volta à s regiões da ebriedade do enamoramento. Trazemos a ebriedade de nascença. O que não podia imaginar é esta reconciliação comigo mesmo. Se calhar foi isso que o Rachma descobriu: que estava muito melhor sozinho do que com famÃlia. Porque é possÃvel que no final quem acabe derrotado seja a solidão. E é possÃvel que no final descubramos que o único ser humano que não é uma chatice absoluta somos nós mesmos.
Talvez seja isso a excelência da identidade: chegarmos a bastar-nos em tudo; se organizamos uma festa, aparece um convidado importantÃssimo, e esse convidado somos nós mesmos; se contraÃmos matrimónio, estamos loucamente apaixonados pelo nosso par porque o nosso par somos nós mesmos; se morremos e ressuscitamos e vemos Deus, a nossa perplexidade é grande porque estamos a ver o nosso próprio rosto. E tem graça que seja eu a dizer estas fantasias; logo eu, que sou incapaz de estar sozinho quinze minutos sequer, os quinze minutos que dura a corrida de um táxi.
Manuel Vilas, in 'Em Tudo Havia Beleza'