David Mourão-Ferreira

Portugal
24 Fev 1927 // 16 Jun 1996
Poeta/Escritor

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Férias

É um triste sintoma da passagem do Tempo verificarmos que muitas coisas, dentro de nós, vão deixando de ter, a pouco e pouco, o aspecto mágico de que se revestiam. Pois não eram «mágicas» as férias da infância, mágicos os lugares, as praias, os pinhais, mágico o próprio Verão, contido entre parênteses de luz...? E eram «mágicas», ainda, as férias da adolescência, deslumbradas ou patéticas pela experiência dos primeiros amores, dos grandes protestos, sazão de esperanças e desesperos, que no tronco das árvores se gravavam, ou em areia e vento se esculpiam... Depois, com a maturidade, as férias degradam-se ao nível de mera terapêutica anual. São, na engrenagem em que a Vida nos lançou, os instantes de pausa e de repouso para a máquina. Mas persiste, no fundo de cada um de nós, até no ritual de que apesar de tudo as rodeamos, a expectativa de não sei que mágica purificação. E não pode deixar de ser assim, porquanto as férias constituem, para o homem profano das sociedades modernas, um vestígio (ou um sucedâneo) da sua ancestralidade religiosa. Trata-se, com efeito, de uma situação eminentemente «mítica», que desde já tentaremos apontar.

Traço inconfundível do «homem-religioso» (geralmente sublinhado pelos grandes especialistas da História das Religiões) é a tendência para não considerar, nem o espaço nem o tempo, como algo de contínuo ou de homogéneo. Para ele, pelo contrário, há, no espaço, lugares privilegiados e, no tempo, momentos de eleição. Nuns e noutros se manifesta a presença do sagrado; através de uns e de outros o homem se re-liga (daí a origem da palavra «religião») a determinadas experiências primordiais, sendo-lhe então possível repetir, mercê da ruptura do tempo e do espaço profanos, os próprios «mitos» (situações arquetípicas e exemplares) em que essas experiências se modelaram.

Não tenho infelizmente aqui à mão (porque também estou em férias...) alguns livros fundamentais sobre o assunto e, muito em especial, os de Mircea Eliade, que são particularmente sedutores e apaixonantes. Creio, no entanto, que ele (ou, se não ele, qualquer dos seus confrades) alude à persistência, no mundo contemporâneo, da ancestral experiência religiosa do espaço e do tempo não-homogéneos, exemplificando-a, se não erro, com o significado mítico que atribuímos a certo número de lugares (a casa onde nascemos, a escola que frequentámos) e a certo número de datas (festividades, aniversários) que representam zonas diferenciadas ou periódicas interrupções no espaço e no tempo habituais. Mas não me recordo de ter lido, em perspectiva semelhante, qualquer referência às férias. Todavia, o seu significado, a este respeito, parece-me deveras patente.

Melhor ou pior, todos pretendemos, com as férias, rasgar uma clareira na nossa vida quotidiana. E essa clareira consiste em abrir uma brecha no muro do Tempo e em eleger, simultaneamente, um lugal propiciatório. Tudo isto apenas com o fim de repousar? Não só, segundo me parece. Em certos casos, repousaríamos muito melhor sem mudar de poleiro. Desde logo, aliás, a escolha do local pode ser altamente reveladora: há os que se manifestam sob o signo da constância, indo sempre para os mesmos sítios; há os de bússola mais inquieta, que partem em busca da novidade. Nem sempre serão os primeiros os de ânimo geralmente mais constante; e nada impede que se recrutem, entre pacatíssimos cidadãos, os grandes aventureiros-em-tempos-de-férias. Dar-se-á, em ambas as circunstâncias, um bem natural fenómeno de compensação: Qual o volúvel que não sente a nostalgia de ser firme? Qual o sedentário que não sofre a tentação do nomadismo?
De qualquer modo, tanto os que demandam, cada ano, o mesmo espaço sagrado, como os que dele procuram, cada ano, renovadas imagens, se esforçam afinal por abolir (quinze dias que seja!) a homogeneidade do espaço em que habitualmente se movem.

A ruptura operada no tempo, essa, ainda é mais flagrante. Mas a coincidência de uma com a outra é que permite, justamente, a experiência de determinadas situações míticas, que não seriam viáveis de outro modo.
Quem não sonhou, alguma vez, que repetia as proezas de Ulisses (ou as de Simbad, o Marinheiro), ao sentir-se vogar, longe da costa, numa casca de noz, ou ao chegar à praia, extenuado, depois de ter nadado umas centenas de metros? Quem não se viu reconduzido à Idade de Ouro, por assistir, entre o balido das ovelhas, a um crepúsculo na serra? Quem não se julga revestido da pele do Bom Selvagem, só por andar de tanga o dia inteiro?

E todas estas experiências, por muito fugidias ou imperceptíveis que sejam, têm o condão de nos re-ligar a certas forças elementares da existência, de despertar imagens arquetípicas, soterradas no inconsciente da espécie, de nos fazer ouvir, mais de perto, a pulsação original do Mundo. Nisto reside, para a psique, uma das grandes funções terapêuticas das férias — função comparável à que representam, nas sociedades arcaicas, não poucas formas do comportamento religioso.

Já repararam, em qualquer praia, à hora do banho, no que há por vezes de orgiástico nesse espectáculo da multidão a comungar com a água e a comungar, entre si, através da água? Por outro lado, as férias são, para certas pessoas, épocas extremamente propícias ao estabelecimento de relações; e nota-se, mais acentuada que nunca, a tendência para viver em regime tribal. Então, os grupos, as coteries, os círculos, já não obedecem, forçosamente, a razões de conveniência, nem de comunidade de interesses, nem de identidade de opiniões ou de princípios. Saturado de si e dos que lhe são demasiado semelhantes, o homem reencontra, muitas vezes, durante as férias, a revelação, em si e nos outros, da surpreendente variedade humana. Nada mais é preciso, em certos casos, para o reconciliar com a humanidade. Daqui deriva, como se vê, já no plano social, mas com origem em idêntica matriz religiosa, outra importante função que as férias podem desempenhar.

Acrescente-se, por fim, que as férias, como realidade generalizada, e nas modalidades que todos conhecemos, apenas surgiram e se desenvolveram no decurso da crescente laicizaçao do mundo moderno. Serão, portanto, sob este aspecto (e em muitas mais perspectivas, claro, poderiam elas ser encaradas), o sucedâneo inconsciente de outras manifestações de tipo religioso, cujo autêntico sentido e profunda eficácia se foram progressivamente perdendo. Certo é de qualquer modo, que as férias não constituem um fenómeno meramente sociológico (embora mereçam, por esse lado e até em conexão com a presente perspectiva, ser estudadas a fundo). Por mim, tentei apenas sugerir que elas servem também para alimentar, periodicamente, aquele ser fabuloso, com muito de criança e muito de primitivo, que dormita, na sombra, em cada um de nós.
(1962)

David Mourão-Ferreira, in 'Terraço Aberto'




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