O Medo de Parecer Idiota
(Ontem, aliás, anteontem, escrevi: — «O povo desconfia do que entende», etc., etc. Pois bem: — e saiu assim: — «O povo desconfia do que não entende.» Novamente fui dominado por uma dessas fúrias sagradas e inúteis. A minha vontade foi sair de porta em porta, de errata em punho, aos berros: — «Eu disse 'desconfia do que entende!'» Mas logo desisti de qualquer protesto ou correção. Por trás da frase alterada estava meu velho e imortal conhecido: — o erro de revisão. Sim, o erro de revisão é um poder mais alto do que o próprio dono do jornal.)
Desdobro o parêntese: — disse «erro de revisão» e já não sei se foi mesmo erro de revisão. Talvez tenha sido um estilista. O copy desk emprega, de vez em quando, um Flaubert. Estou imaginando a cena. O Flaubert do copy desk apanha o meu original e começa a ler. E, quando digo eu que o povo «desconfia do que entende», o estilista põe fogo pelas ventas. Apanha o lápis vermelho (porque o vermelho é a cor mais enfática) e troca o sentido de tudo. O povo passa a desconfiar do que NÃO entende. E o simples e fulminante NÃO, posto na frase, transfigura o copy desk. Ele arqueja como quem acaba de escrever Salambô.
Fecho o parêntese e passo ao meu amigo Otto Lara Resende. Ou por outra: — não é a hora ainda de entrar o meu amigo Otto Lara Resende. Primeiro, gostaria de dizer duas palavras sobre o intelectual subdesenvolvido. O que o caracteriza, acima de tudo, é o pânico de parecer imbecil. O europeu, não. E já cito um nome que está acima de qualquer dúvida ou sofisma: — Jean-Paul Sartre.
Há quem o considere «a maior cabeça do mundo» (realmente, Sartre tem inspirado algumas das mais abjetas admirações do nosso tempo). Eis o que eu queria dizer: — como todo o grande espírito, ele não tem medo nenhum de ser imbecil. Sabe que o idiota é também uma dimensão do génio. Ainda recentemente foi à Africa. Ao voltar, um repórter perguntou-lhe: — «Que me diz o senhor da literatura africana?»
Sartre responde na hora: — «Muito mais importante do que toda a literatura africana é a fome de uma criancinha.» Disse isso e ainda lhe pingou um ponto de exclamação. Resposta exemplarmente idiota. E eu, lendo a entrevista do mestre, quebrava a cabeça. Quem, além de Sartre, podia falar assim? Eis o que me perguntava: — quem? E, súbito, ocorreu-me o nome certo: — Luvizaro.
Luvizaro, na Rocinha, cavando votos, diria a mesmíssima coisa, sem lhe retirar uma vírgula. E como se explica que um génio assim se comporte? Por isso mesmo, porque é génio, e repito: — o génio tem, por vezes, a nostalgia do imbecil. Mas essa imbecilidade não seria possível no intelectual brasileiro. Aqui, a inteligência não aceita nenhum risco, jamais.
Agora passo, finalmente, a Otto Lara Resende. Estava em Portugal e atravessou um oceano para ver as bodas de ouro dos seus pais. Eu disse «um» oceano. E fossem dois, ou três, e o Otto atravessaria do mesmo jeito e com a mesma e cálida efusão. Certa vez eu o chamei de «flor de imprestabilidade». Fui injusto. Sabemos que o Diabo é um impotente do sentimento. Por este lado, Otto nada tem a ver com o abominável Pai da Mentira.
Quando vou julgar um brasileiro, trato de saber, preliminarmente, se ele chora. É vital chorar. E o Otto chora. Tempos atrás contei por alto, um episódio decisivo na vida do meu amigo. Efe ia partir no dia seguinte para Portugal. E André, seu filho mais velho, belo como um Werther, perguntou-lhe: - «Papai, se você tivesse de me dizer uma coisa, de me dar um conselho. Um conselho para toda a vida - o que é que você diria?»
Na véspera de uma partida, o homem é um pobre ser crispado e indefeso. O Otto pensa um momento. Procurava uma palavra para sempre. E, então, falou: «Meu filho, eu diria: — 'Ama o próximo como a ti mesmo'.» Foi um desses momentos de pai e filho que nem o Otto, nem o André vão esquecer, jamais. Passou. Pouco depois estava o Otto na casa do Hélio Pellegrino. E foram os dois para a cozinha. O Otto não tem úlcera, não tem nada. Mas bebe leite como se tivesse uma víbora cravada no duodeno. Depois de tomar a preciosa rubiácea. Minto: — foi leite e não café. Depois de beber o leite, contou a Hélio toda a conversa com o André.
E, quando chegou ao «Ama o próximo como a ti mesmo», não aguentou mais. Começou a chorar. A casa estava cheia de visitas. E o Hélio, em pânico, arrastou o amigo para o banheiro. Lá se trancaram. Estavam num banheiro sobressalente da casa estreito, íntimo, como um túmulo. Toda a tensão do Otto se dissolvia em ternura, pena, amor, e não sei que mais. E que fez o Hélio Pellegrino? Ah, o Hélio, o Hélio! Metade mineiro, metade siciliano, foi mais irmão, mais solidário do que nunca. As duas metades choraram no ombro do Otto.
Bem. Só agora percebo que me alonguei demais num episódio estritamente sentimental. O que eu queria dizer é que o Otto, como eu, como o Hélio ou qualquer outro intelectual brasileiro também tem medo de parecer idiota. Não é como o genial Sartre que, não raro, chega à debilidade mental. Imaginem vocês que eu e Otto opinamos sobre dois quadros de Volpi.
Na véspera de partir para a Europa, o sociólogo Luciano Martins passa na casa do Hélio Pellegrino e deixa lá os dois quadros referidos. Criou-se para nós, visitas, a obrigação de gostar de Volpi. Na véspera eu sondara o Mário Pedrosa; cheguei mesmo à inconveniência de propor um paralelo entre aqueles dois quadros e todo o Portinari, Mário Pedrosa foi taxativo: — «Portinari é um académico.» Esbugalhei-me: — «Académico?» E já o Mário Pedrosa apontava o Volpi. Aquilo, sim. Volpi era muito maior que Portinari.
No pânico de parecer um analfabeto plástico, não insinuei qualquer objeção. O Mário Pedrosa ainda perguntou: — «Você não acha?» Respondi, com descaro: — «Acho.» Pouco depois, estava eu diante dos quadros de Volpi, dizendo, de puro cinismo: — «Muito bom.» Suspense de uma pausa e acrescentei, mais enfático: — «Muito bom mesmo.»
No dia seguinte eu e o Otto fomos ver os dois quadros. A questão era saber quem seria melhor, Volpi ou Portinari. Disputou-se, na sala do Hélio Pellegrino, uma acirrada pelada crítica. Paramos no quadro grande, que o anfitrião achava melhor. Eram quatro velas. Talvez uma macumba. Depois lembrei-me do título de um filme: — Candelabro Italiano. Já a macumba me parecia menos provável do que o candelabro. E súbito, o Hélio Pellegrino solta a última palavra: «É uma porta.» Eu e Otto nos entreolhamos, cobertos de horror.
Bem. Eis o que eu pensava, eis o que o Otto pensava: — «Se aquilo era porta, tudo é permitido, tudo.» Daí a pouco o amigo me puxava e nos trancamos, os dois, no banheiro, o mesmo banheiro onde ele estrebuchara no mais lindo choro de sua vida. Lá dentro, ele me cochicha: — «Sou muito mais Portinari.» Sussurrei, em seguida: — «Também sou muito mais Portinari.» E, ali, no banheiro inescrutável do Hélio Pellegrino, cada um de nós se concedeu o direito de ser, por um momento, um pleno, chapado, eufórico idiota plástico.
Nelson Rodrigues, in 'O Homem Fatal'