PossuÃdos pelo Demónio
A invenção do demónio. Se estamos possuÃdos pelo demónio, não pode ser só por um, porque então viverÃamos, pelo menos na terra, em paz, como se fosse com Deus, em união, sem contradições, sem reflexão, sempre seguros do homem atrás de nós. O seu rosto não nos amedrontaria, porque, como seres diabólicos, terÃamos, mesmo que um pouco sensÃveis à vista, a esperteza suficiente de preferir sacrificar uma mão para lhe tapar a cara com ela. Se estivéssemos possuÃdos apenas por um demónio, um que tivesse uma visão tranquila, calma, de toda a nossa natureza, e liberdade para dispor de nós em qualquer momento, esse demónio teria também poder suficiente para nos manter durante o âmbito de uma vida humana muito acima do espÃrito de Deus em nós, e mesmo para nos balançar de um lado para o outro para que assim não vÃssemos nenhum sinal dele e consequentemente não fôssemos perturbados por esse lado. Só uma multidão de demónios pode ser responsável pelas nossas desgraças terrenas. Porque não se matam eles uns aos outros até só ficar um, ou porque não ficam subordinados a um grande demónio? Qualquer das duas hipóteses estaria de acordo com o princÃpio diabólico de nos enganar tanto quanto possÃvel. Faltando unidade, para que serve a atenção escrupulosa que todos os demónios nos prestam? Deve importar muito mais a um demónio que nos caia um cabelo do que a Deus, uma vez que o demónio perde na realidade esse cabelo e Deus não. Mas não conseguimos atingir um estado de bem-estar enquanto houver dentro de nós tantos demónios.
Franz Kafka, in 'Diário (09 Jul 1912)'