Somos Todos Vaidosos
Há várias maneiras de lisonjear alguém e, como é óbvio, temos de adaptar o nosso estilo ao alvo escolhido. Certas pessoas apreciam as lisonjas aplicadas em grossas camadas, como argamassa com uma colher de pedreiro, o que exige muito pouca arte. No caso das pessoas sensÃveis, porém, é preciso agir com infinita delicadeza, recorrendo mais à sugestão do que a palavras proferidas de viva voz. Muitos indivÃduos gostam das lisonjas disfarçadas em forma de insulto, como: «Ah, saÃste-me um grande palerma, sabes. Eras capaz de dar os teus últimos seis dinheiros ao primeiro mendigo de ar esfomeado que te aparecesse à frente»; ao passo que outros só engolem as lisonjas quando administradas por intermédio de um terceiro, de modo que, se C quer elogiar A nestes termos, tem de confidenciar a B, que é amigo Ãntimo de A, que acha que A é um tipo magnÃfico, e suplicar a B que seja discreto e não transmita esta opinião a ninguém, muito menos a A. Porém, é preciso certificarmo-nos de que B é um homem de confiança, caso contrário este não estará à altura das nossas expectativas.
Os ingleses de gema, rijos e singelos, que dizem «eu cá detesto bajulações» e «a mim ninguém me faz o ninho atrás da orelha com rapapés», etc., etc., são muito fáceis de levar à certa. Basta lisonjeá-los o suficiente pela sua escassa vaidade e podemos fazer deles o que muito bem nos apetecer.
Afinal de contas, a vaidade é tanto uma virtude como um vÃcio. É fácil recitar máximas retiradas de um manual escolar contra a natureza pecaminosa da vaidade, mas trata-se de uma paixão que nos pode levar tanto a agir bem como mal. A ambição não passa de um nome chique para a vaidade. Queremos granjear elogios e admiração - ou fama, como preferimos chamar-lhe - e, portanto, escrevemos livros magnÃficos e pintamos quadros sublimes e cantamos doces canções e labutamos de bom grado no estúdio, na oficina e no laboratório.
Queremos enriquecer, mas não para gozarmos a fartura e o conforto - umas meras duzentas libras por ano proporcionam isso a qualquer homem; o que desejamos, isso sim, é termos uma casa maior e mobilada com mais espalhafato do que a do nosso vizinho; é termos cavalos e criados mais numerosos do que os dele; é podermos vestir a nossa esposa e as nossas filhas com roupas absurdas, mas caras; é podermos organizar lautos jantares que custem pequenas fortunas, dos quais nós próprios não saboreamos sequer um bocado. E para alcançarmos estes fitos, contribuÃmos para a labuta do mundo com o nosso espÃrito clarividente e atarefado, divulgando o comércio entre os seus povos, levando a civilização aos seus recantos mais longÃnquos.
Não vilipendiemos a vaidade, portanto. Façamos, em vez disso, uso dela. A honra em si não passa da forma mais sublime de vaidade. Este instinto não se restringe aos dândis como Beau Brummel ou à s coquetes como Dolly Varden. Há a vaidade do pavão e a vaidade da águia. Os snobes são vaidosos. Mas os heróis também o são. Venham daÃ, meus irmãos, jovens janotas como eu, sejamos vaidosos em conjunto. Vamos dar as mãos e ajudar-nos mutuamente a aperfeiçoar a nossa vaidade.
Envaideçamo-nos, não das nossas calças e dos nossos penteados, mas sim dos nossos corações indómitos e do trabalho das nossas mãos, da nossa sinceridade, da nossa pureza, da nossa nobreza de carácter. Mostremo-nos demasiado vaidosos para nos rebaixarmos a fazer o que quer que seja de reles ou mesquinho, demasiado vaidosos para proferirmos uma só palavra dura ou levarmos a cabo um só gesto de ingratidão. Envaideçamo-nos da nossa natureza de cavalheiros sinceros e rectos neste mundo onde pululam os patifes. Orgulhemo-nos dos nossos pensamentos elevados, dos nossos feitos grandiosos, das nossas vidas rectas.
Jerome K. Jerome, in 'Ociosas Reflexões de um Ocioso'