Dança em Frente do Sol
Ó deus diurno! Onde
a manhã universal?
que os galos anunciam,
desde o mundo egipcíaco
até hoje, com o seu
rubro canto elegíaco?
A tua imagem chora
números. E tem,
desde a primeira aurora,
um punhal móvel sobre
o rosto, girando:
o rosto do Zodíaco.
Para os vedas, o barco
pertence a Varuna.
Para mim, um pavão
de cabeça encoberta
pela chuva, em arco-
íris, a cauda aberta.
Levas a manhã, de olhos
oblíquos como ameixas
e corpo de romã.
E - por capricho - deixas
dois ramos de louro
na cabeça de Pã.
Há quantos séculos, já
te segue a outra amada
a quem bebeste o sangue?
reduzida a uma camélia taciturna
e noturna?
Aquela a quem negaste
a tua glória ruiva,
dando-lhe apenas prata?
Hoje uma pobre viúva
(noiva caída da haste)
que ficou lunática?
Em vão os povos - ainda
na infância das coisas -
te ofereceram anjos
e bois, para o teu fausto,
em sangrento holocausto
até o último hausto!
Sol que estás nos agouros
dos profetas, nos halos
dos santos, no ás de ouros,
na garganta dos galos,
na crina dos cavalos,
nos chifres dos touros.
Duro qual Faraó,
os que te olhem de frente
ficam cegos, e quando
te despedes, ficamos
negros, apedrejando-te
simbolicamente.
Josué, onde está
o grande deus girassol?
Aí vem o Dilúvio,
agora não mais plúvio-
marinho, mas de sol.
Onde uma outra nau?
E agora contra a asa
que fará o mundo em brasa?
Pois grandes anjos, todos
do mesmo sexo, os rostos
iguais, já não guardam
a ordem em que os homens
subiram? de mistura
com asas e abdomens,
para o azul intacto?
Sujos de terra, uns
nos ombros dos outros?
Como as folhas de um cacto?
Não és o gavião de ouro,
nem o pássaro etrusco.
Antes, no lusco-fusco,
o teu disco voador
se assemelha a uma estúpida
lágrima vermelha.
Cassiano Ricardo, in 'Poesias Completas, Rio de Janeiro, 1957'