O Sangue das Horas
Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua...
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.
São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.
Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura,
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura...
Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar...
A insónia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras...
Meus olhos são duas feridas
por onde escorre o sangue das horas.
Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos...
Criei cabelos de luar.
Cassiano Ricardo, in 'Poesias Completas, Rio de Janeiro, 1957'