Herman Hesse

Alemanha
2 Jul 1877 // 9 Ago 1962
Escritor

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Da Relação com os Livros

Um elenco de livros cuja leitura seja absolutamente necessária e sem os quais não há saúde nem cultura não existe. Em vez disso, há para cada homem um notável número de livros nos quais precisamente ele, o indivíduo, pode encontrar satisfação e prazer. Descobrir gradualmente estes livros, entabular uma relação duradoura com os mesmos, possivelmente apropriarmo-nos deles pouco a pouco, até os tornarmos uma posse extrínseca e intrínseca estável, constitui uma tarefa específica e pessoal para cada indivíduo, que ele não pode descurar sem restringir substancialmente o âmbito da sua própria cultura e das suas próprias alegrias e, com isso, o valor da sua própria existência.

Tal como o leitor não pode ter aprendido a conhecer a árvore ou a flor da sua preferência num manual de botânica, do mesmo modo este não poderá conhecer ou descobrir os seus livros preferidos numa história da literatura ou num ensaio teórico. Só quem se habituou a estar o mais possível ciente da finalidade específica de cada acção da vida quotidiana (e é este o fundamento de toda a cultura) poderá, ainda que inicialmente não se dedique senão a jornais e a revistas, aprender bem cedo a usar as leis e os critérios essenciais que dizem respeito à leitura.

Para determinar o valor que um livro pode ter para mim, o facto de o mesmo ser famoso ou de estar na moda não tem praticamente nenhum relevo. Os livros não existem para que todos os leiam e encontrem neles um tema de conversas mundanas durante um certo tempo e depois os esqueçam, como se faz com a última notícia desportiva ou de crónica policial: os livros querem ser gozados e amados com calma e seriedade. Só então nos revelarão as suas íntimas belezas e virtudes.

Além disso, é surpreendente como o efeito de muitos livros cresce quando os lemos em voz alta. Contudo, isto só deveria valer para os poemas, os contos breves, os ensaios concisos e formalmente perfeitos, e coisas desse género. Uma boa leitura em voz alta de textos que se prestem a isso é sumamente instrutiva, dado que apura a sensibilidade para o ritmo secreto da prosa, que forma a base de todo o estilo pessoal.
Além disso, é absolutamente necessário adquirir um livro que se tenha lido com gosto, ainda que não seja barato.

Quem não dispõe de muitos meios fará, geralmente, bem em adquirir apenas aquelas obras que lhe tenham sido calorosamente recomendadas por amigos muito próximos ou então aqueles livros que essa pessoa já conhece e aprecia, e os quais tem a certeza que irá retomar mais de uma vez.
Quem mantém uma relação de familiaridade com qualquer livro e pode lê-lo e relê-lo, e dele extrair sempre uma nova alegria e uma nova satisfação, deve fiar-se tranquilamente no seu modo de sentir e não deixar perturbar a sua alegria por qualquer crítica! Há algumas pessoas que não lêem mais nada de bom grado do que os livros de fábulas, outras que, pelo contrário, negam e proíbem a leitura das mesmas aos seus filhos. A razão está sempre da parte de quem, não obedecendo a qualquer norma ou modelo preestabelecido, presta ouvidos ao sentimento e à exigência do seu coração.

Devemos ler poucos ou nenhuns comentários aos grandes (como Shakespeare, Goethe, Schiller), pelo menos até os termos conhecido através das suas próprias obras. Ler demasiadas monografias e biografias ofusca frequentemente o maravilhoso prazer que nos advém de conhecer, mediante a leitura das suas obras, a íntima essência de um homem, de forjarmos directamente uma imagem sua. E paralelamente às obras não deixemos escapar as cartas, os diários e os diálogos, por exemplo, de Goethe. Onde as fontes são muito próximas e facilmente acessíveis, não é lícito recorrer a comparações em segunda mão. Em todo o caso, entre as biografias, leiam-se apenas as óptimas; das péssimas, existem legiões.

(1907)

Hermann Hesse, in 'Uma Biblioteca da Literatura Universal'




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